Nosso direito penal, diferentemente do alemão, ainda vê na pena a finalidade retributiva, na medida em que pune o autor de uma infração penal, e preventiva, visando evitar a prática de novas infrações penais.
Essa prevenção é geral, pois inibe os demais membros da sociedade de cometer ilícitos; e especial, tendo por propósito retirar o autor da infração penal do convívio da sociedade, impedindo-o de delinquir novamente e procurando reeducá-lo.
O direito alemão possui três vertentes básicas, propugnando que o direito penal não pode ser construído apenas no ontologismo, na dogmática penal, como prega o finalismo. O direito penal, ou melhor, a pena, deve possuir uma finalidade, ou seja, uma função.
São espécies de funcionalismo, segundo o direito penal alemão, de forma muito resumida:
a) moderado: visa a fazer com que a política criminal possa adentrar na dogmática penal (Claus Roxin). Reconhece a existência de bens jurídicos e que o direito penal tem exclusiva função de proteção a bens jurídicos. Dá muito valor à culpabilidade e a pena tem como finalidade a prevenção geral positiva (visa manter a confiança no sistema ou retomá-la).
b) limitado: o direito penal tem por fundamento a utilidade social, mas está limitado pelo Estado Democrático de Direito, com todas suas garantias (proteção a bens jurídicos, legalidade, culpabilidade etc.). Tem como principal expoente Mir Puig.
c) sistêmico ou radical: a finalidade do direito penal é a estabilização do sistema que foi abalado pela prática do delito. O bem jurídico tutelado é a própria norma e a aplicação da pena visa a assegurar a vigência da norma. O delito, portanto, é a frustração das expectativas normativas e a pena visa a retomar a confiabilidade no sistema, que se viu abalada pela prática do crime. Essa teoria em muito se assemelha com a visão de Hegel sobre o crime: o crime é a negação do direito e a pena é a negação do crime e a reafirmação do direito. Portanto, a pena é a negação da negação do direito.
O que nos interessa é o funcionalismo sistêmico ou radical, que tem como Günther Jakobs seu maior expoente, idealizador do direito penal do inimigo contemporâneo.
Mas as vertentes do direito penal do inimigo remontam ao século XVI, com Thomas Hobbes, seguido dois séculos após com Jean-Jacques Rousseau, Immanuel Kant e Johann Gottlieb Fichte. Basicamente eles entendiam acerca do inimigo do Estado:
1) Hobbes: em casos de alta traição contra o Estado, o criminoso não deve ser tratado como súdito, mas como inimigo. Isso porque retornou ao estado da natureza, ou seja, um estado de guerra.
2) Rousseau: o malfeitor que ataca o contrato social deixa de ser membro do Estado, visto que se encontra em guerra contra ele. Assim, deve ser tratado como inimigo e morrer como tal.
3) Kant: quem ameaça constantemente o Estado e a sociedade, quem não aceita o Estado comunitário legal, deve ser tratado como inimigo.
4) Fichte: quem abandona o contrato de cidadão, perde todos os direitos.
Em razão desse entendimento, na fase da vingança pública do direito penal, que vigorou em boa parte da época dos citados filósofos, inclusive aqui no Brasil, predominava o arbítrio do soberano e a crueldade das penas, como a de morte na fogueira, a roda, o esquartejamento, o arrastamento, a sepultação em vida, entre outras. O processo era sigiloso e inquisitorial, o que aliado às leis imperfeitas e lacunosas, favorecia ainda mais o arbítrio dos governantes. A ideia do sistema à época era a segurança dos soberanos. Pela intimidação e aplicação de penas severas e cruéis, reprimia-se o crime. O grande exemplo no Brasil foi o julgamento e execução de Tiradentes, cujo corpo foi esquartejado e exibido para que as pessoas ficassem apavoradas e não mais atentassem contra o Estado.
Resumidamente, o direito penal do inimigo nada mais é do que o direito penal do autor, em contraposição ao direito penal do fato. O juízo de culpabilidade é substituído pelo juízo de periculosidade.
O inimigo, segundo Jakobs e seus predecessores, é um homem, mas não pessoa. Com a sua conduta, deixou de merecer ser tratado como pessoa. Quem teima em delinquir ou se comporta de maneira perigosa para a sociedade, perde o direito de ser tratado como pessoa. Merece ser tratado como inimigo, uma vez que com sua conduta passou a ser considerado perigoso para o sistema. Assim, aquele que não oferece uma garantia cognitiva suficiente de que não será um perigo para o sistema ou demonstra comportamento perigoso, o direito penal passará a combater um inimigo, ou seja, adentra em estado de guerra.
São características marcantes do direito penal do inimigo:
a) punição de atos preparatórios (tipos de mera conduta e de perigo abstrato);
b) desproporcionalidade das penas;
c) regimes mais rigorosos de execução de pena (Ex: RDD);
d) legislações mais duras para o combate de determinadas espécies de delito (ex: Lei de combate ao crime organizado);
e) ao inimigo não se impõe pena (juízo de culpabilidade), mas medidas de segurança (juízo de periculosidade);
f) não se olha para o que o inimigo fez, mas para o que ele fará ou poderá fazer;
g) o inimigo não é um sujeito de direitos, mas objeto de coação;
h) quando o cidadão delinque, cumprida a pena, volta a ter esse status. Já o inimigo, por ser perigoso, perde esse status.
i) para o direito penal do cidadão a pena visa a assegurar a vigência da norma (prevenção geral positiva); no direito penal do inimigo, a pena é apenas coação, pois visa a combater perigos;
j) os direitos e garantias constitucionais são flexibilizados, permitindo maior facilidade para a quebra de sigilos, prisões processuais, aproveitamento de provas etc.
Pode parecer que aplicar o direito desta forma seria excelente para conter a criminalidade, notadamente a organizada. No entanto, até que seja aplicado com finalidades outras, nem sempre republicanas.
Não digo que isto esteja a ocorrer, mas que muitos processos e investigações que tramitam na Suprema Corte trazem diversos traços do direito penal do inimigo, não há como negar.
Decretação de medidas cautelares, inclusive prisões, que normalmente, para o cidadão comum, não seriam deferidas. Inobservância do sistema acusatório de processo, não raras vezes, sendo determinadas medidas cautelares de ofício ou contra o parecer do Ministério Público, que é o titular da ação penal pública e responsável por sua propositura. Procedimentos e processos que tramitam ou tramitaram na Excelsa Corte sem que os acusados ou investigados tivessem prerrogativa de foro. Denúncias genéricas e sem individualização de conduta e autoria, sendo julgadas coletivamente (de baciada). “Investigações secretas”, não havendo abertura de vista dos autos em sua totalidade para a defesa. Instituição do “Juiz Investigador”, vedado no sistema acusatório de processo que vigora em nosso país. Punições desproporcionais, que dificilmente, para não dizer nunca, seriam aplicadas no juízo de primeiro ou segundo grau, dentre outras situações anômalas e estranhas ao nosso sistema processual.
Não nos esqueçamos que o direito penal e o processual penal devem obediência a diversos princípios e regras constitucionais, dentre eles o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa, a proporcionalidade das penas, o princípio da legalidade e o da isonomia, não podendo uma pessoa ser tratada de forma diferente de outra, exceção feita a casos expressamente permitidos pela Constituição Federal, como é o caso das imunidades parlamentares e a prerrogativa de foro.
Quando os sistemas constitucional e processual são subvertidos, mesmo que para situações excepcionais, coisas muito ruins podem ocorrer.
O direito vale para todos e muito melhor seria que os princípios e regras constitucionais, que nos são extremamente caros, fossem observados para que nossa jovem democracia possa crescer sadia e livre de vícios, a fim de que não adoeça e pereça.