No Brasil contemporâneo, a educação superior tem se transformado em um campo de tensões entre o imperativo do acesso e a urgência da qualidade. A assinatura do novo decreto presidencial que endurece as regras da Educação a Distância (EAD), nesta segunda-feira (19), marca um ponto de inflexão decisivo para o setor. Cursos como Medicina, Enfermagem, Psicologia, Odontologia e Direito foram definitivamente retirados da modalidade remota, enquanto engenharias permanecem com possibilidade de formação a distância com apenas 10% de atividades presenciais. É o início de um novo capítulo — e também o espelho de um dilema: formar para o diploma ou para a profissão?
Desde 2017, o Brasil assistiu a uma explosão da EAD, impulsionada por políticas que desburocratizaram a criação de polos e flexibilizaram a carga horária presencial. Entre 2010 e 2022, o número de alunos em EAD cresceu 474%, saltando de 1,2 milhão para mais de 5,5 milhões de estudantes, segundo o Censo da Educação Superior (Inep/MEC). Hoje, 62% das matrículas no ensino superior privado já ocorrem em cursos não presenciais. São Paulo lidera o ranking, com mais de 1 milhão de estudantes apenas nessa modalidade.
O novo decreto, assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e desenhado pelo ministro da Educação, Camilo Santana, representa uma tentativa de corrigir os excessos e abusos do modelo liberalizado que vigorava até então. Mas também reacende uma discussão urgente: quem está sendo atendido por essas mudanças e quem está sendo deixado para trás?
Qualidade inegociável
Os cursos banidos do EAD — Medicina, Direito, Psicologia, Odontologia e Enfermagem — compartilham um denominador comum: são profissões de contato humano direto, que exigem habilidades práticas, domínio técnico sensível, tomada de decisão ética e, em muitos casos, responsabilidade civil ou penal por erros cometidos.
Dados do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) mostram que, até o início de 2024, havia mais de 193 mil alunos de Enfermagem matriculados em cursos exclusivamente a distância, muitos sem qualquer experiência prática adequada em laboratórios ou ambientes hospitalares. Em Direito, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) rejeita abertamente a formação remota, citando os altos índices de reprovação no Exame da Ordem entre egressos de cursos EAD.
A decisão de tornar esses cursos 100% presenciais não é apenas pedagógica — é ética. Formar um enfermeiro sem contato com um paciente ou um psicólogo sem experiência em clínica supervisionada é uma irresponsabilidade social. Nesse sentido, o decreto é um avanço civilizatório.
O Brasil que aprende depois do expediente
Mas o outro lado da moeda é sombrio. A maioria dos alunos de EAD no Brasil é composta por mulheres negras, com mais de 30 anos, que trabalham e estudam à noite, conforme estudo da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES). Para muitos desses brasileiros, a educação a distância não é uma escolha — é a única chance de alcançar o ensino superior.
A suspensão de cursos remotos sem a ampliação simultânea da oferta pública e gratuita, especialmente nos Institutos Federais e Universidades Estaduais, pode provocar um efeito colateral grave: a elitização do ensino superior presencial, principalmente em cidades do interior e nas periferias dos grandes centros urbanos.
Sem alternativas, milhares de estudantes poderão ser forçados à evasão, ao endividamento em cursos presenciais caros e incompatíveis com suas rotinas, ou à informalidade no mercado de trabalho.
Engenharia: uma exceção sem lógica?
Se por um lado o decreto parece criterioso, por outro abre brechas difíceis de explicar. A liberação da modalidade EAD para engenharias, mesmo que com exigência mínima de 10% de atividades presenciais, é um dos pontos mais criticados por especialistas.
As engenharias exigem laboratórios, cálculos complexos, trabalho em equipe, visitas técnicas e soluções de problemas em tempo real. Como justificar que um engenheiro civil possa ser formado à distância, enquanto um fisioterapeuta não?
Segundo o Censo da Educação Superior de 2022, cerca de 70% dos calouros de Engenharia já ingressam em cursos EAD — um indicativo do peso econômico e político do setor privado na tomada de decisões regulatórias. O próprio MEC admitiu, em notas anteriores, que cogitava barrar também a EAD para engenharias, mas o lobby venceu — por ora.
E agora? O que esperar?
O novo marco da EAD estabelece três tipos de cursos:
Presenciais: no mínimo 70% da carga horária presencial.
Semipresenciais: pelo menos 30% presencial e mais 20% com aulas ao vivo online.
EAD: 10% presencial + 10% ao vivo online; o restante remoto gravado.
Todos os cursos — inclusive os EAD — deverão aplicar provas presenciais e manter polos físicos com salas de estudo, internet estável, laboratórios e responsáveis pedagógicos. É o fim dos polos improvisados em fundos de padaria ou salas comerciais desativadas. Estima-se que até 80% dos polos hoje existentes não atendam a esses critérios e terão de ser encerrados ou adaptados.
Educação a distância: nem vilã, nem panaceia
A educação a distância tem o poder de transformar vidas, sobretudo em um país continental como o Brasil. Mas não se pode tratar o ensino superior como indústria de produção de diplomas. Tampouco se pode criminalizar a tecnologia e o ensino remoto como se fossem sinônimos de má qualidade.
O que se exige agora é equilíbrio. O decreto é um marco — mas precisa ser seguido de ações estruturantes: mais financiamento para universidades públicas, expansão dos institutos federais, ampliação do FIES e do ProUni, fiscalização rigorosa dos cursos privados e, acima de tudo, um pacto pela qualidade com inclusão social.
Como educador e comunicador, defendo que a qualidade da educação não seja privilégio de poucos — mas direito de todos. E que nenhuma medida seja tomada sem ouvir quem mais importa: o aluno.
Jornalista Vice Presidenteda tv Aberta de SP
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