A palavra “vicário” tem origem no latim vicarius, que remete a substituto, ou aquele que ocupa o lugar de outro. Essa definição traduz esse tipo de violência, que consiste na agressão indireta contra as mulheres, em que os agressores, ao perderem o controle sobre elas, voltam-se contra o que elas mais amam, seus filhos. Nesse contexto, as crianças tornam-se vítimas diretas de violência com o propósito de ferir emocionalmente as mães. Na prática, é a violência que se exerce não diretamente contra a mulher, mas através de terceiros, especialmente os filhos, com o objetivo de causar-lhe sofrimento emocional e psicológico.
Este termo foi cunhado pela psicóloga forense argentina Sonia Vaccaro e representa uma das formas mais cruéis e sofisticadas da violência de gênero, onde os filhos (as) são utilizados como instrumentos para atingir a mulher
A violência contra a mulher, especialmente no âmbito doméstico e familiar, pode se manifestar de múltiplas formas. Nos últimos anos, tem-se reconhecido e debatido um tipo específico e ainda pouco conhecido, a violência vicária. Trata-se de uma forma de agressão indireta, onde o agressor se utiliza dos filhos (ou outros entes familiares) prolongando o ciclo de violência psicológica mesmo após o término da relação conjugal.
Essa modalidade é comum após o rompimento do vínculo conjugal, quando o agressor, privado do acesso direto à vítima, instrumentaliza os filhos para continuar a agressão. Isso pode se manifestar, por exemplo, em manobras judiciais abusivas de guarda ou visitas, manipulação emocional das crianças, falsas acusações contra a mãe ou alienação parental inversa.
A violência vicária deve ser compreendida como parte do padrão de controle e dominação que caracteriza a violência de gênero. Mesmo com a separação física, o agressor busca manter poder sobre a mulher por meio da relação parental.
Esse comportamento integra o chamado pós-abuso, uma fase muitas vezes negligenciada, mas com efeitos devastadores, tanto para a mulher quanto para os filhos, que passam a ser vítimas secundárias ou testemunhas diretas da continuidade da violência, em uma prisão emocional.
Aspectos Jurídicos no Brasil
Embora o termo “violência vicária” ainda não esteja expressamente previsto na legislação brasileira, sua prática pode ser enquadrada em diversas normas já existentes, como, a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006): Art. 5º amplia o conceito de violência doméstica e familiar, permitindo a interpretação de que a violência vicária configura forma de violência psicológica e moral; Código Penal: Pode se enquadrar em crime de ameaça (art. 147), inclusive como lesão corporal de natureza psicológica com base na Lei 14.188/2021, entre outros.
Ainda, o Estatuto da Criança e do Adolescente –ECA, protege os filhos da instrumentalização em disputas parentais abusivas.
O CNJ tem editado resoluções e protocolos para combater a violência institucional, como a Resolução 254/2022, que orienta os magistrados sobre condutas protetivas a mulheres em situação de vulnerabilidade, o que pode abranger casos de violência vicária.
Existe, ainda projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional buscando incluir expressamente o conceito de violência vicária no ordenamento jurídico brasileiro, o que já se observa em países como a Espanha e o México, onde este crime de violência vicária já é reconhecido expressamente em leis de proteção à mulher. A exemplo, a Espanha, alterou sua legislação para prever que o feminicídio pode se dar por meio da morte de filhos como forma de vingança ou punição à mãe, a mais extrema forma de violência vicária.
Efeitos nas Crianças e na Mãe
A violência vicária, afeta profundamente o desenvolvimento emocional das crianças, que são colocadas no centro de conflitos, forçadas muitas vezes, a escolher lados ou manipuladas por um dos genitores. Isso gera traumas, ansiedade, depressão, sentimento de culpa e prejuízos à formação da identidade e vínculos afetivos.
Para a mãe, a violência que mais dói, onde fica em uma verdadeira prisão emocional, com efeitos incluem sofrimento psicológico contínuo, sensação de impotência, desgaste judicial e riscos reais à sua integridade emocional e, por vezes, física.
Desafios e Caminhos
A principal dificuldade no enfrentamento da violência vicária é sua invisibilidade institucional. Muitas vezes, o sistema de justiça falha em identificar a manipulação do vínculo parental como forma de violência. Há, portanto, a necessidade de capacitação dos operadores do direitos, na identificação de sinais deste tipo de violência; escuta qualificada e acompanhante psicossocial; legislação clara que reconheça e tipifique essa modalidade de violência; Campanhas públicas educacionais para sensibilização social.
Conclusão
A violência vicária é uma grave violação dos direitos da mulher e da criança, que perpetua o ciclo da violência por meios indiretos e muitas vezes silenciosos. O seu reconhecimento como forma autônoma de agressão é essencial para garantir uma resposta rápida, mais eficaz e protetiva do Estado, bem como para promover a responsabilização do agressor e o amparo integral às vítimas.
A construção de um olhar sensível, jurídico e social sobre o tema é urgente para romper com a lógica patriarcal que ainda transpassa as relações familiares e judiciais.