Segundo o dicionário de Português da Google, proporcionado pela Oxford Languages, atleta é o “indivíduo robusto, de sólida compleição, dado aos exercícios do corpo e neles bem adestrado; hércules”. Não é, ao que parece, o jogador de Xadrez. Porém, a presença google conduz à Inteligência Artificial, a responsável por milhares de clubes de xadrez no mundo passarem a considerar atletas seus praticantes amadores. Sim, amadores, de vez que os profissionais bem graduados continuam a ser chamados Mestre e Grande Mestre Nacional ou Internacional. Meus amigos clubistas aceitam com honras sua classificação como atletas, lembrando que existem até mesmo as Olimpíadas do gênero. Esquecem-se de que os esportes olímpicos são físicos e o Xadrez não, nem esporte é, não passa de um inteligente jogo de tabuleiro.
Essa ocupação do espaço enxadrístico pela Inteligência Artificial é recente. Com a ascensão do e-mail, WhatsApp e outras fontes, e com o encolhimento da troca por correio, a Federação Internacional de Xadrez por Correspondência virou de Xadrez à Distância. É enorme hoje no mundo o número de torneios amadores por e-mail, em que jogadores trocam lances enunciados por codificação. Isso se dá da mesma forma na qual livros de Xadrez escritos por Grandes Mestres no século passado vão para a lixeira, trocados por aplicativos oriundos da Inteligência Artificial, que dizem aos consultantes como responder aos ataques das brancas ou das negras.
Amigos meus esperam que a IA venha um dia a lhes possibilitar um diálogo amistoso, uma troca de ideias, com antigos Grandes Mestres do Xadrez, aqueles mesmos do passado. Digo-lhes que há no século XX muita coisa dita por seus ídolos e registrada para a posteridade do tabuleiro, que poderá servir de alimento a conversações fake do meio, mas que não se iludam em eventual mergulho nos séculos anteriores, quando não havia registros de voz tão a gosto da IA. Duvido que o frade espanhol Ruy López (sec. XVI), por exemplo, teria algo a lhes dizer, além de “P4R”, a notação espanhola que escreveu para sua histórica abertura.
O avanço incontido da Inteligência Artificial não sabemos onde vai dar, nem se ainda teremos tempo para saber. No início de abril, porém, executivos da OpenAI e da Meta anunciaram ao Financial Times que estão prestes a lançar novos modelos capazes de raciocinar e de planejar atividades essenciais para que a máquina supere a espécie humana. Referem-se uma ao ChatGPT e outra ao Llama 3. O vice-presidente da Meta diz que seus técnicos estão trabalhando arduamente para que seu modelo “fale, tenha memória, raciocine e planeje” como ninguém. Será a chamada “Inteligência Artificial Geral”.
Anúncios como esse não têm absolutamente que alarmar amantes do Xadrez e de sua prática, visto que essa modalidade estaria – se é que chega mesmo a estar! – entre as preocupações pra lá de derradeiras do sistema produtivo. Entre as primeiras certamente está o ponto final de milhares de empregos de mão-de-obra barata em todo o mundo, a serem deixados de lado por produtos como, por exemplo, o óculos Ray-Ban da Meta, capaz de invadir com o olhar uma máquina, identificar um defeito e informar um assistente de IA como consertá-lo. Sem salários nem obrigações trabalhistas.
Imaginem o tal Ray-Ban fazendo aquilo para o que não foi concebido: examinar um tabuleiro de xadrez no momento crucial de uma partida e determinar a seu assistente de IA o caminho para a vitória, seja das Brancas ou das Negras. Apesar de Yan Le Cunn, Chefe de IA da Meta, já ter dito que os sistemas atuais de IA “cometem erros estúpidos”, são a eles que a maioria (supõem-se!) dos enxadristas não-profissionais recorre ao responder a lances em torneios à distância. E se o Ray-Ban vier mesmo a substituir os sistemas atuais, os enxadristas estarão a caminho de serem jogados fora, como os operários consertadores de máquinas e outras centenas de profissões. Em outras palavras, de tomar um Xeue-Mate virtual.
Outros inteligentistas chegam a dizer que (devem estar brincando!) em 2045 a IA fará com que algumas pessoas possam viver até 500 anos (sem o Xadrez, é claro!). Qual o sentido tecnológico desse “viver”? Terrível premonição, mas… sabe-se lá! Como viver cinco séculos sem nada para fazer? Só restará a todos o que propõe Noam Chomsky em artigo ao New York Times ao falar sobre programas de Inteligência Artificial: “Dada à falsa ciência e a incompetência linguística desses sistemas, só podemos rir ou chorar de sua popularidade”.
Mas isso já será coisa para nossos filhos, netos, bisnetos e os que vem depois.