Um ou outro desavisado ainda costuma reputar a crônica gênero menor. Nada mais injusto. Sucessor do folhetim do século XIX, trata-se de gênero de intranquila delimitação e por muitos considerado inclassificável. Espremido muitas vezes, nas páginas dos nossos matutinos, inserto nas quatro linhas de um pequeno retângulo entre o editorial e as manchetes, se presta mais a um dedo de prosa com o leitor, sem o black-tie empertigado do artigo de fundo.
Permitimo-nos esse “nariz de cera” conceitual, para perscrutar um pouco o Carlos Lacerda (1914-1977) na sua faceta de cronista. Não vem ao caso num periódico literário cuidar do Lacerda político, conspirador, administrador do antigo Estado da Guanabara dos anos 60, orador arrebatador e virulento e dono de jornal.
Lacerda espargiu as chispas do seu talento como cronista num livro atrativo, Uma Rosa é Uma Rosa é Uma Rosa. Possivelmente, atingiu, nesse volume, o píncaro alcançado pelos plenipotenciários desse gênero como Rachel de Queiroz, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Guilherme de Figueiredo (outro esquecido) e Humberto Werneck.
Em crônica memorável, até hoje lembrada, recolhida no referido livro, o dono da Editora Nova Fronteira dissertou prosaicamente sobre as várias espécies de rosas, seus matizes, os cuidados devidos com os roseirais, dando mostras de um hobby muito perlustrado por aquele homem público. Nesse passo, Lacerda se inspirou no mote da frase do conhecido poema da norte-americana Gertrude Stein, detonador de tantas conjeturas e aproximações (“Rose is a rose is a rose is a rose…”).
Lacerda era leitor inveterado de catálogos de roseiristas do mundo todo e timbrou em resgatar a história das rosas ao longo dos tempos.
O cronista dá conta (nesse texto originalmente publicado na Revista Senhor, em março de 1959) de que em 1965 eram nada menos do que 16 mil variedades de rosas na Europa. Falou sobre cruzamento de linhagens, embevecido pela beleza sedutora das rosas, suas cores, os perfumes agressivos ou discretos, sobre as espécies nascendo no jardim, “no rocio da madrugada” (“rocio” significa orvalho).
Com enlevo, sentencia, filosofante e sensível: “Uma rosa é uma rosa. Nós é que temos de nos definir em relação a elas.”
Noutro excerto, encontramos o cronista lendo descrições de rosas nos catálogos como se fossem poemas:
“Primeiro Amor Sobe Muito
Bem Resistente Leve Fragrância
Menos à Ferrugem Clima Quente
Branco Puro”
O autor glosa a importância que a Imperatriz Josefina atribuiu à rosa. “Foi ela quem fez da rosa a flor da moda na França do seu tempo”, escreveu. A imperatriz da França a cultivava no Château de la Malmaison, palácio em que vivia com Napoleão. Por sinal, há até uma rosa chamada Souvenir de la Malmaison, do tipo Bourbon.
Enfim, Carlos Lacerda comenta a larga gama de significação das rosas e responde, inclusive, se havia rosas nos jardins suspensos da Babilônia.
Outra crônica agregada à seleta Uma Rosa… e que nos fisga poderosamente desvenda a arte de “inventar vozes” do ator e declamador português João Villaret (1913-1961), na sua quase mediunidade ao construir mundos no reproduzir-se o “milagre da voz humana”, em jogral.
Nesse magnífico instantâneo do cotidiano, Lacerda testemunha sua surpresa ao ouvir esse menestrel e performer “domador da voz humana”:
“Paisagens e modos de Portugal, frias agulhas, penedias e arestas da serra da Estrela, ou pasmaceira ensolarada do Alentejo, da música lenta e mortiça dos Açores ou dar ‘mornas’ caboverdeanas, ao bombástico ‘vira’ minhoto ou aos cantares da Nazaré, do corrido às desgarradas, cantos de trabalho e de amor, tudo o que se adensou na alma ibérica, sedimentado nos séculos de agonias e esperanças, está concentrado nessa garganta sem música, onde a voz, só a voz é prestigiosa e onipotente.”
A crônica abraça os sentimentos genuínos que deflagra o desenrolar da voz na garganta do ator dotado de incontáveis recursos que explora com sua versatilidade de diseur.
Nessa época, Lacerda coligia material para escrever a história dos irmãos Julio Mesquita Filho e Francisco Mesquita (proprietários do jornal O Estado de S.Paulo) e a história mal contada da “Bucha” (Burschenschaft, organização secreta que funcionou no âmbito da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco), projetos que acabaram engavetados.
Carlos Lacerda publicou outras coletâneas de crônicas, igualmente leves e cheias de verve: O Cão Negro (1971) e Em Vez (1975). São crônicas que fariam jus de figurarem naquelas antigas e deliciosas coleções de crônicas intituladas “Para Gostar de Ler”, criadas décadas atrás na Editora Ática pelo invulgar Jiro Takahashi.
Os sebos — e hoje somente eles — podem nos devolver o exímio cronista que também foi um dos maioriais da oratória e do jornalismo diário no nosso país. São crônicas digestivas e instrutivas que estabelecem imediata comunicação com o leitor.