Vivemos num pretenso Estado Democrático de Direito.
Todos os agentes jurídicos, para tal mister, devem ter passado por uma faculdade de Direito.
E seguramente leram e debateram um dos livros mais antológicos daqueles cursos: “O caso dos Denunciantes Invejosos”, de Lon Fuller. Este modesto artigo pretende uma analogia com os dilemas do livro.
Durante uma disputa eleitoral fraudada, um arrogante grupo, sem escrúpulos, que se jactava superior a todos os demais, inclusive o povo, considerando-o incapaz de eleger os representantes “adequados” e portanto, necessitava de uma autoridade “suprema” que atemorizasse e manipulasse todas as demais, rasgou a carta “magna” e aboletou-se no Poder. No referido livro, esse grupo autointitulou-se “camisas-púrpuras”.
As duas forças que detinham capacidade de reagir a esse golpe, se acovardaram: os militares e os advogados.
Nesse hipotético mundo, sem opositores, os camisas-púrpuras cometeram as maiores barbaridades cívicas e criminais, mandando aprisionar quem se manifestava individualmente (até mesmo parlamentares), tirando das prisões condenados úteis, confiscando bens e censurando a imprensa.
Mas a história é cíclica, talvez com intervenção divina: não há mal que perdure (o próprio mal se destrói), e o antigo brocardo: “nunca fica mais escuro do que à meia-noite” (ou seja, a meia-noite é o início de uma nova alvorada).
Um dia, o pernicioso regime acabou caindo, e o Estado Democrático de Direito foi restaurado.
Após a derrocada dos “camisas-púrpuras”, formou-se um movimento de opinião que passou a exigir a punição dos que, por ação ou omissão (ou covardia), haviam deixado o golpe acontecer ou, tendo obrigação, não o tinham impedido ou pelo menos resistido.
Alguns ilibados juristas argumentaram que nada havia a ser feito, nem contra os militares nem contra os advogados, pois durante aquele período, alheio à vontade desses, o próprio Direito estivera suspenso, foi um pesadelo que passou, e os atos de arbítrio cometidos não eram portanto nem legais nem ilegais, e sim advindos de um regime de anarquia e terror.
Outros não menos ilibados reagiram a esse pensamento, exigindo que fosse criado um tribunal especial, baseado em lei penal retroativa, para julgar e punir as ações e as omissões dos que silenciaram (ou tiraram proveito) diante das barbaridades havidas.
Voltou à tona a eterna controvérsia se o Direito deve buscar rigorosamente a Justiça, ou simplesmente executar as leis vigentes, segundo a interpretação de quem puder.
Os primeiros alegando que “somos membros de uma Sociedade que deseja preservar a liberdade, a dignidade e a igualdade, e nunca o conseguiremos se ficarmos reféns de leis, decretos e portarias”.
Pergunta que não cala: o jurista deve ser um servidor da Política ou um operador da Justiça ?
A aplicação das leis e até da Constituição, depende dos interesses momentâneos dos poderosos, que imputam como “verdade” aquilo que lhes convém ?
Podem mudar o sentido das palavras, interpretando como ilegal aquilo que ontem era legal ?
Mais do que um conjunto de normas redigidas pelos parlamentares, mais do que a jurisprudência dos tribunais, os melhores doutrinadores pregam que o Direito deve se inspirar nos valores da natureza humana e nos princípios que fundamentam a vida social.
Não deve ser aceito qualquer regime político e qualquer lei ou interpretação dela. Quando o povo, a partir de suas lideranças, considerar que um governo é arbitrário e o sistema jurídico opressor e injusto, deve encontrar a organização e a coragem de lutar para que seja criado um novo Direito, conforme seus anseios, valores e princípios absolutos.
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José Crespo foi deputado estadual na ALESP durante três mandatos legislativos e atualmente é presidente do ICPP – Instituto de Cidadania e Políticas Públicas.