O assassinato do jovem universitário pelo policial militar é apenas mais um, em interminável sequência de violências a que o ser humano foi habituado a assistir desde o madrugar da história.
Para enfrentar o crime temos a lei. A primeira legislação penal aplicável ao Brasil, durante o período colonial, foi o Livro V das Ordenações Filipinas, aprovadas pelo rei d. Philipe I de Portugal, em 1603, revalidadas e confirmadas pelo rei d. João IV, em 1643 (Ordenações Filipinas – Livro V, Silvia Hadad Lara, Cia. das Letras, 1999). Hoje, a legislação criminal se concentra no Código Penal de 1940, e no Código de Processo Penal de 1941, ambos ultrapassados no dizer de especialistas, por incompatíveis com as exigências do mundo superpovoado, globalizado, informatizado, e sob poderosa influência da Inteligência Artificial.
O crime, em suas múltiplas modalidades, ganhou proporções até algum tempo desconhecidas. Observe-se o tráfico internacional de entorpecentes cultivados em países subdesenvolvidos, de onde se espraiam para mercados ricos, com rotas de exportação.
Apesar de toda a legislação constitucional e ordinária, e da presença de oneroso Poder Judiciário, o crime está a cada dia mais presente em nosso cotidiano. As razões do aumento da criminalidade e do aparecimento do crime organizado, são assuntos a serem estudados por sociólogos e especialistas em criminologia, aos quais compete proporcionar aos legisladores subsídios para manterem a legislação atualizada.
A Constituição de 1988 determina que a segurança pública é direito de todos e dever do Estado. Às polícias militares compete a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública. Veja-se, nesse sentido, o disposto pelo artigo 144, e seu parágrafo 5º. Polícias militares, e corpos de bombeiros militares, como forças auxiliares e reservas do Exército sujeitam-se aos princípios de hierarquia e disciplina, devendo respeito e obediência aos governadores dos respectivos Estados.
Ordena, ainda, a Constituição, que “A lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas atividades” (Art. 144, § 7º).
Garantir a eficiência das suas atividades não significa autorização para sair às ruas ameaçando, agredindo, ferindo ou matando. No Estado de Direito Democrático, ao contrário do que sucedia ao tempo das Ordenações Filipinas, “todos são iguais perante a lei, sem distinções de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. Quando acusados, pobres ou ricos, brancos, pretos ou pardos, jovens ou idosos, inocentes ou culpados, fazem jus a pleno direito de defesa, ao devido processo legal, à assistência de advogado, a julgamento por juiz imparcial.
O assassinato a sangue frio do estudante de Medicina Marco Aurélio Cardenas Acosta, de 22 anos, outra qualificação não comporta. Foi, de fato, assassinado. A justificativa consistiria no fato de que teria golpeado o espelho retrovisor de viatura policial e tentado fugir (O Estado, 22/11, pág. A18). Aceite-se, como verdadeiro o fato alegado. Como revide, o soldado Guilherme Macedo o matou com um tiro no peito (O Estado, 23/11, pág. A24)
A desproporção é mais do que chocante. Em todos os aspectos, a ação policial foi criminosa. Em revide ao esbarrão no espelho, deliberada ou ocasional, um tiro e um jovem morto, para o desespero dos pais, parentes, colegas, amigos e estranhos, como eu.
O Estado de S. Paulo, sempre comedido nos editoriais, analisou o crime em editorial com o título A banalidade da morte em SP. Diz o jornal: “Nas cenas disponíveis, o jovem desarmado, sem camisa e aparentemente atordoado, corre dos policiais, reage à abordagem e, quando já estava no chão, sem qualquer chance de matar os PMs, é alvejado por um deles no abdômen. Simples assim”.
Na frase, parece-me não apropriada a afirmação: “quando já estava no chão, sem qualquer chance de matar os PMs” (O Estado, 23/11, pág. A24). Matar como, se encontrava-se no chão, dominado e desarmado?
Reluto em admitir que o governador Tarcísio de Freitas e o secretário de Segurança, Guilherme Derrite, “são entusiastas de uma polícia que desperta medo”, como afirma O Estado. Polícias que despertam medo e aterrorizam a população são típicas de ditaduras, como o foram as de Stalin, de Hitler, de Felinto Müller, e, hoje, de Putin, Maduro ou Ortega.
O Estado de Direito Democrático necessita de policiais respeitados pela eficiência e pela disciplina, sem jamais, todavia, ultrapassarem os limites da Constituição e da lei. Polícia elogiada e envaidecida pela quantidade de pessoas mortas, quase sempre viola os limites da legalidade, como acaba de acontecer.