Durante décadas, o movimento surrealista foi narrado como uma revolução artística liderada por homens visionários como André Breton, Salvador Dalí e Max Ernst. No entanto, por trás das imagens oníricas e das palavras desconcertantes, havia mulheres que não apenas inspiraram, mas também criaram, transformaram e desafiaram os limites do surrealismo. Elas foram chamadas de musas, amantes, modelos — mas eram, acima de tudo, mestras. Esta matéria é um tributo às mulheres esquecidas do surrealismo, cujas obras e vozes merecem ser redescobertas e celebradas.
O Surrealismo e o Silenciamento Feminino
O surrealismo surgiu nos anos 1920 como uma resposta à racionalidade excessiva e à devastação da Primeira Guerra Mundial. Com raízes no dadaísmo e influências da psicanálise freudiana, o movimento buscava libertar o inconsciente e explorar o irracional. Mas, ironicamente, enquanto pregava liberdade, o surrealismo frequentemente aprisionava suas mulheres em papéis secundários.
André Breton, o autoproclamado “papa do surrealismo”, via a mulher como um símbolo místico — uma ponte para o desconhecido. Essa visão, embora poética, reduzia a mulher à função de musa, negando-lhe o papel de criadora. Muitas artistas foram marginalizadas, suas obras ignoradas ou atribuídas aos homens com quem se relacionavam.
Leonora Carrington: A Rebelião Alquímica
Leonora Carrington, britânica de nascimento, recusou-se a ser apenas a amante de Max Ernst. Fugiu da guerra, foi internada em um hospital psiquiátrico na Espanha e transformou sua dor em arte. Sua obra é marcada por figuras mitológicas, alquimia e feminismo velado. Carrington não apenas pintava — ela escrevia contos e novelas que desafiavam a lógica patriarcal.
Remedios Varo: A Cientista do Imaginário
Remedios Varo, espanhola exilada no México, combinava ciência, misticismo e feminismo em suas obras. Formada em artes e apaixonada por alquimia, Varo criou mundos onde mulheres eram protagonistas de experimentos cósmicos.
Varo via a arte como uma forma de libertação espiritual. Suas obras são narrativas visuais que desafiam a lógica cartesiana e celebram o feminino como fonte de conhecimento. Ela não foi musa de ninguém — foi autora de um universo próprio.
Dorothea Tanning: Entre o Erotismo e o Abismo
Dorothea Tanning, norte-americana, começou como pintora surrealista e evoluiu para escultora e escritora. Sua obra explora o erotismo, a metamorfose e o inconsciente feminino. Tanning abandonou o estilo surrealista tradicional e mergulhou em formas abstratas e esculturas de tecido que evocavam o corpo feminino. Sua poesia e autobiografia revelam uma mente inquieta, crítica e profundamente criativa.
Claude Cahun: A Identidade como Revolta
Claude Cahun, francesa, foi uma das artistas mais radicais do surrealismo. Fotógrafa, escritora e ativista, Cahun desafiou as normas de gênero e identidade muito antes de isso se tornar pauta. Suas autorrepresentações exploram o andrógino, o duplo e o estranho. Em suas palavras: “Sob esta máscara, outro rosto. Sob este rosto, outra máscara.”
Cahun usou a arte como resistência política — durante a ocupação nazista em Jersey, espalhou panfletos subversivos. Sua obra é um manifesto contra o binarismo e a opressão. Hoje, é reconhecida como precursora da arte queer e performática.
O Legado Silenciado
Essas mulheres não foram exceções — foram parte essencial do surrealismo. No entanto, seus nomes foram apagados, suas obras ignoradas nos grandes museus e livros de história. O rótulo de “musa” serviu para domesticar sua rebeldia, reduzir sua complexidade e negar sua autoria.
Mas o tempo começa a corrigir essa injustiça. Exposições, estudos acadêmicos e movimentos feministas têm resgatado essas vozes. Carrington, Varo, Tanning, Cahun — e tantas outras — são hoje reconhecidas como mestras do surrealismo, não por serem mulheres, mas por serem geniais
Imagem: Gertrude Abercrombie