Há algumas décadas, vicejou a absurda Teoria da Graxa (Grease Theory), segundo a qual seriam necessárias doses de corrupção para movimentar a cadeia econômica. Com base nessa lógica, alguém poderia até argumentar em favor da “função social” do tráfico de drogas, por gerar empregos.
Nos anos 1970, a corrupção era tão naturalizada que se permitia, legalmente, seu abatimento no Imposto de Renda, conforme o Código Tributário francês. O escândalo Watergate levou Richard Nixon à renúncia e impulsionou a criação do Foreign Corrupt Practices Act (FCPA) nos EUA —um divisor de águas no combate à corrupção e no avanço das práticas de compliance ao redor do mundo.
É comum ouvir o argumento de que a corrupção é parte da cultura brasileira. De fato, temos um histórico de compadrio político e nepotismo, herança do modelo das capitanias hereditárias. Mas até quando vamos nos lamuriar por isso? Precisamos encontrar nosso próprio caminho republicano e implementar uma política pública anticorrupção.
Quando se esvaziou a Lei de Improbidade Administrativa, em 2021 (Lei 14.230), quase se legalizou o nepotismo —então classificado como “virtude da gestão pública” pelo líder do governo na Câmara. Um exemplo desse nepotismo arraigado: desde a mudança na lei, sete governadores ou ex-governadores —incluindo importantes ministros do atual governo— viabilizaram a nomeação de suas esposas para os cargos vitalícios de conselheiras dos Tribunais de Contas dos respectivos estados, órgãos responsáveis por fiscalizar, inclusive, as contas dos próprios maridos.
Corrupção há no mundo todo. A questão é: como se previne, como se pune, como se controla? Ela jamais será extinta —assim como a desigualdade ou a violência. O quarto relatório da OCDE sobre a implementação de sua convenção anticorrupção aponta, no caso brasileiro, pontos críticos como impunidade, vulnerabilidade do Ministério Público (lembremos da PEC 37 e da retaliação institucional), decisões politizadas do STF, ineficiência do sistema de justiça e incapacidade de punir a corrupção transnacional
Em 100% dos países democráticos ocidentais, é possível iniciar o cumprimento de pena após condenação em primeira ou segunda instância. O Brasil é o único que exige quatro instâncias. E ainda possui em seu ordenamento a prescrição retroativa —uma verdadeira mina de impunidade.
A revelação do orçamento secreto expôs a relação incestuosa entre Executivo e Legislativo, evidenciando o presidencialismo de cooptação praticado há anos e comprometendo o princípio constitucional da separação dos Poderes. O Índice de Percepção da Corrupção da Transparência Internacional coloca o Brasil na 107ª posição entre 180 países —a pior da série histórica.
No cenário internacional, há uma percepção generalizada de falta de vontade política para enfrentar a corrupção. No Brasil, soma-se a isso um grave déficit informacional e educacional, que contribui decisivamente para a normalização e a letargia da sociedade diante dos escândalos. Sofremos uma perda progressiva de credibilidade das instituições e de confiança interpessoal. Quando essa credibilidade é minada, abre-se uma perigosa fissura na democracia.
O nível global de democracia em 2023, segundo o Instituto V-Dem (Universidade de Gotemburgo), é o menor desde 1985. O relatório, elaborado com a colaboração de 4.200 especialistas, analisa mais de 600 atributos democráticos. Atualmente, 71% da população mundial —cerca de 5,7 bilhões de pessoas— vivem sob regimes autocráticos, um aumento de 48% em apenas dez anos. Em 2003, apenas 7% viviam em processos de autocratização; em 2023, esse número saltou para 35%.
Segundo o Democracy Index 2024, divulgado pela The Economist Intelligence Unit, o Brasil recuou seis posições, ficando na 57ª colocação entre 165 países —atrás do Suriname. O índice avalia aspectos como processo eleitoral, pluralismo, funcionamento do governo, participação política, cultura política e liberdades civis. Por aqui, assistimos ao sucateamento do debate democrático, com a normalização das urgências de votação no Congresso —de 22, em 2008, para mais de 400, em 2024.
A Noruega é o país mais democrático do mundo, seguida pela Nova Zelândia e pela Suécia —os mesmos que também lideram o ranking de controle da corrupção. No extremo oposto estão Afeganistão, Myanmar e Coreia do Norte.
De forma igualmente enganosa à narrativa sobre o caso Daniel Silveira —que, ao contrário do que foi dito, não foi condenado apenas por “xingar ministros”—, assistimos recentemente ao uso hábil do “batom retórico” para minimizar a gravidade da violação à ordem democrática. Trata-se de um dos crimes mais severos do nosso ordenamento, motivo central das condenações tanto do deputado quanto de Débora Rodrigues dos Santos
Impostores fantasiados de super-heróis e suas “balas de prata” iludem a população, enquanto enfrentamos uma sabotagem grave e contínua às políticas de combate à corrupção. Precisamos de transparência como estratégia e de instituições sólidas e estáveis —fundamentais para o desenvolvimento e a riqueza das nações, como destacou Daron Acemoglu, Nobel de Economia.
Fonte: Uol