Maio chegou. E com ele, mais uma campanha de conscientização sobre o abuso sexual contra crianças e adolescentes.
Mas antes de qualquer laço laranja, precisamos entender uma coisa: essa luta não se vence com campanhas bonitas, e sim com responsabilidade coletiva, escuta ativa e coragem para enxergar o que muitos preferem ignorar.
O abuso sexual infantil não é ficção, não é exagero, não é “assunto delicado demais para se falar”.
É realidade. Crua. Presente. Silenciosa.
E está, muitas vezes, mais próxima do que imaginamos.
O ABUSO NÃO TEM CARA
A imagem do “monstro desconhecido” espreitando crianças em becos escuros é confortável. Ela dá a falsa ideia de que o perigo está longe, lá fora, em alguém que não conhecemos.
Mas a verdade é outra: a maioria dos abusos acontece dentro de casa, cometida por pessoas da confiança da vítima. Pais, padrastos, tios, irmãos mais velhos, avôs, vizinhos… e também mães, madrastas, tias, avós, professoras, vizinhas.
O abuso sexual não tem gênero definido. Homens e mulheres podem cometer esse crime hediondo.
O agressor, seja ele quem for, tem livre acesso ao corpo e à mente da criança. Manipula, silencia, ameaça e se aproveita da inocência para violar o que há de mais sagrado: a infância.
E por isso o abuso sexual infantil não grita. Ele sussurra. Ele esconde. Ele cala.
E uma criança silenciada carrega um peso que pode durar uma vida inteira.
Nunca esqueça: o abusador tem acesso à tua casa. Tem acesso ao teu filho.
E, na maioria das vezes, ele não assusta ele agrada. Está sempre presente, solícito, oferecendo ajuda, carinho, atenção.
É justamente aí que mora o perigo.
O abusador não chega como ameaça ele chega como “alguém de confiança”. Ele se aproxima para conquistar, não para assustar.
Ele sorri. Brinca. Oferece colo. Cria vínculos. Ganha a simpatia de todos.
E enquanto todos estão distraídos com a aparência de bondade, ele prepara o terreno da violência.
OS SINAIS EXISTEM. MAS VOCÊ QUER MESMO VER?
Uma criança não tem o vocabulário para explicar o que está vivendo, mas o corpo fala.
O comportamento muda. O brilho nos olhos se apaga. O sono se torna inquieto. A raiva aparece sem motivo aparente. O medo de determinada pessoa se intensifica.
Outros sinais podem incluir:
Interesse sexual precoce, frases e desenhos com teor sexual
Agressividade, isolamento ou crises de ansiedade
Regressão nos hábitos de higiene
Culpa, vergonha, ou a frase “não conta pra ninguém”.
Crianças não criam esse tipo de sofrimento do nada. Elas não têm acesso a essas emoções sem antes terem sido violentadas em algum nível.
E se você ouvir com atenção, vai perceber que ela está tentando contar. À maneira dela. Do jeito que consegue.
O SILÊNCIO NÃO PROTEGE. A OMISSÃO MACHUCA.
Quantas vezes pais, professores, profissionais de saúde ou até vizinhos já desconfiaram de algo, mas preferiram não se envolver?
Quantas vezes a dúvida foi abafada com frases como “é coisa da cabeça dela”, “é só uma fase”, “ele jamais faria isso”?
E assim, o agressor segue impune.
E a criança segue sozinha.
Porque o silêncio protege o abusador nunca a vítima.
OS SEGREDOS COMEÇAM NAS PEQUENAS COISAS
Muita gente acha inofensivo dar algo para uma criança um doce, um presente, uma recompensa e dizer: “não conta pra sua mãe”. Parece bobo, mas esse tipo de atitude ensina à criança que manter segredos dos pais é aceitável.
E é justamente esse raciocínio que prepara o terreno para abusadores.
O agressor também diz:
“Esse é o nosso segredo.”
“Se você contar, ninguém vai acreditar.”
“Seus pais vão brigar com você.”
Então não, não é só um docinho escondido.
É um treino emocional perigoso que pode tornar a criança vulnerável para ocultar abusos muito mais graves.
Quem ama uma criança não ensina a mentir ensina a confiar.
Quem cuida, não esconde informa, orienta e fortalece os vínculos com os pais ou responsáveis.
NÃO FORCE, NÃO EXIBA, NÃO EXPONHA
Outro alerta importante:
não obriguem seus filhos a abraçar ninguém.
Não os forcem a dar beijo ou sentar no colo de alguém só para agradar.
A criança precisa aprender desde cedo que o corpo é dela, e que ninguém nem mesmo familiares tem o direito de ultrapassar seus limites físicos.
Respeitar o “não” de uma criança é ensinar que ela tem voz, tem escolha, tem proteção.
E por favor: não exponham suas crianças nuas ou seminuas nas redes sociais.
O que para você pode parecer inocente ou “fofo”, para um abusador pode ser material de exploração. A internet não perdoa, e não há controle total sobre o destino de uma imagem.
Proteger é também preservar.
Preservar a imagem, o corpo e a dignidade.
CUIDADOS QUE PROTEGEM: ESCOLHAS QUE SALVAM
Crianças devem dormir em casa, sob o cuidado dos pais.
Nada de dormir no amigo, no vizinho, no primo “de confiança”.
71,5% dos abusos sexuais são cometidos por pessoas conhecidas da vítima.
Não é exagero. É prevenção. É responsabilidade.
Por mais que doa dizer “não” ao pedido inocente de uma criança que quer dormir fora, lembre-se: o desconforto de hoje pode evitar um trauma irreversível amanhã.
Proteger também é frustrar. Também é negar.
Mas negar com amor, com diálogo, com explicação.
Porque o amor que protege é sempre mais forte que o que apenas agrada.
CONSCIENTIZAR É MAIS DO QUE INFORMAR. É EDUCAR PARA A ESCUTA E PARA O ENFRENTAMENTO.
Falar sobre abuso não é ensinar sobre sexo é ensinar sobre respeito, corpo, limite e segurança.
É dizer para a criança que o corpo dela é dela, e que nenhum adulto tem o direito de ultrapassar suas fronteiras.
É criar espaços onde ela possa falar sem medo, sem culpa, e principalmente, sem ser desacreditada.
Precisamos ensinar nossos filhos que segredos que causam medo não são segredos são pedidos de socorro.
E precisamos ensinar os adultos que proteger uma criança é um dever que não se negocia.
MAIO LARANJA É UM LEMBRETE. MAS O COMBATE É DIÁRIO.
A cada dia em que o assunto é evitado, uma criança permanece em risco.
A cada denúncia não feita, uma infância se perde.
E a cada silêncio cúmplice, um agressor se fortalece.
Não basta participar de caminhadas ou fazer publicações com laços laranja.
Essas ações são simbólicas e importantes, mas não bastam.
Precisamos ir até onde o problema acontece: nas escolas, nas comunidades, nas famílias.
Precisamos fazer palestras, peças de teatro que encenem a realidade, conversas abertas com educadores, pais, cuidadores e crianças.
É na educação que a prevenção ganha força. É na escuta real que a transformação começa.
Ser adulto é ter coragem de ouvir o que machuca.
É investigar o que incomoda.
É interromper o ciclo da violência, mesmo quando isso abala estruturas familiares.
Porque nenhuma reputação vale mais do que uma vida.
Nenhuma relação vale mais do que a integridade de uma criança.
Que esse Maio Laranja não seja apenas mais uma campanha visual nas redes sociais.
Mas um chamado real à consciência, ao acolhimento e à ação.
Porque proteger a infância é, sim, uma luta.
E toda luta precisa de pessoas dispostas a enxergar a verdade mesmo quando ela dói.