Para quem vive e estuda o direito penal há mais de 35 anos é triste ver quando ele é desfigurado e passa a ser empregado como instrumento de opressão, passando ao largo de sua técnica, existente há quase um século em nosso país.
O direito penal anda de mãos dadas com o direito constitucional, fundado em princípios e regras constitucionais, criados justamente para proteger o cidadão do arbítrio estatal em um fenômeno chamado de “constitucionalização do direto penal”.
Por esse motivo, não se analisa a letra fria da lei, mas em cotejo com as normas constitucionais, notadamente os direitos e garantias constitucionais previstos no artigo 5º da Carta Constitucional, rico em princípios e regras de direito penal.
Assim, toda e qualquer norma penal deve ser interpretada de acordo com princípios e regras constitucionais e nunca o contrário, inclusive as de índole processual, como o devido processo legal, que contém em seu bojo como elementos indispensáveis a ampla defesa e o contraditório, que legitimam a aplicação do direito penal, que atinge muitas vezes o “status libertatis” do indivíduo.
Princípios como o da legalidade, intervenção mínima e proporcionalidade são essenciais para a aplicação correta do direito penal, sem o que não há justiça, mas justiça.
E o direito penal do inimigo é a total contradição ao direito penal do cidadão, vez que trata o investigado e o acusado não como sujeito de direitos, mas como uma pessoa sem eles, um verdadeiro pária, excluído da proteção constitucional e legal.
Até pouco tempo via alguns traços do direito penal do inimigo aplicado em decisões do STF envolvendo os atos de 8 de janeiro, alguns parlamentares e pessoas em especial.
Hoje, não mais tenho dúvida de que está sendo empregado, diante de diversas decisões que, em situação normal, não seriam tomadas, contrariando inclusive jurisprudência da própria Corte.
São características marcantes do direito penal do inimigo: a) punição de atos preparatórios (tipos de mera conduta e de perigo abstrato); b) desproporcionalidade das penas; c) regimes mais rigorosos de execução de pena (Ex: RDD); d) legislações mais duras para o combate de determinadas espécies de delito (ex: Lei de combate ao crime organizado); e) ao inimigo não se impõe pena (juízo de culpabilidade), mas medidas de segurança (juízo de periculosidade); f) não se olha para o que o inimigo fez, mas para o que ele fará ou poderá fazer; g) o inimigo não é um sujeito de direitos, mas objeto de coação; h) quando o cidadão delinque, cumprida a pena, volta a ter esse status. Já o inimigo, por ser perigoso, perde esse status; i) para o direito penal do cidadão a pena visa a assegurar a vigência da norma (prevenção geral positiva); no direito penal do inimigo, a pena é apenas coação, pois visa a combater perigos; j) os direitos e garantias constitucionais são flexibilizados, permitindo maior facilidade para a quebra de sigilos, prisões processuais, aproveitamento de provas etc.
Pode parecer que utilizar o direito desta forma seria excelente para conter a criminalidade, notadamente a organizada. No entanto, até que seja empregado com finalidades outras, nem sempre republicanas.
Decretação de medidas cautelares, inclusive prisões, que normalmente, para o cidadão comum, não seriam deferidas. Inobservância do sistema acusatório de processo, não raras vezes, sendo determinadas medidas cautelares de ofício ou contra o parecer do Ministério Público, que é o titular da ação penal pública e responsável por sua propositura. Procedimentos e processos que tramitam ou tramitaram na Excelsa Corte sem que os acusados ou investigados tivessem prerrogativa de foro. Denúncias genéricas e sem individualização de conduta e autoria, sendo julgadas coletivamente (“de baciada”). “Investigações secretas”, não havendo abertura de vista dos autos em sua totalidade para a defesa. Instituição do “Juiz Investigador”, vedado no sistema acusatório de processo que vigora em nosso país. Punições desproporcionais, que dificilmente, para não dizer nunca, seriam aplicadas no juízo de primeiro ou segundo grau, dentre outras situações anômalas e estranhas ao nosso sistema processual.
Não nos esqueçamos que o direito penal e o processual penal devem obediência a diversos princípios e regras constitucionais, dentre eles o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa, a proporcionalidade das penas, o princípio da legalidade e o da isonomia, não podendo uma pessoa ser tratada de forma diferente de outra, exceção feita a casos expressamente permitidos pela Constituição Federal, como é o caso das imunidades parlamentares e a prerrogativa de foro.
Quando os sistemas constitucional e processual são subvertidos, mesmo que para situações excepcionais, coisas muito ruins podem ocorrer.
O direito vale para todos e muito melhor seria que os princípios e regras constitucionais, que nos são extremamente caros, fossem observados para que nossa jovem democracia possa crescer sadia e livre de vícios, a fim de que não adoeça e pereça.
Evidente que, até pela minha formação e profissão, sou favorável ao combate à criminalidade de forma dura e eficaz, mas sempre com observância aos direitos fundamentais de toda pessoa, que, por mais cruel que seja, não é alijada da proteção constitucional e legal.
Não é possível a opressão estatal por meio do direito penal, de modo que as pessoas fiquem apavoradas e com medo até mesmo de escrever, falar, criticar e se manifestar de forma ordeira sobre qualquer assunto, direito típico e essencial presente em todo país livre e democrático, o que ocorre quando punições são aplicadas de forma desproporcional apenas para dar exemplo e impingir o pavor, o que foi lugar comum na antiguidade e idade média, e ainda ocorre em diversos países, todos totalitários, como forma de controle da massa.
Não se esqueçam que: “pau que bate em Chico, também bate em Francisco”.