Pela enésima vez, a população toma conhecimento de dramáticos casos de inundação de bairros populares, localizados sobretudo nas várzeas do Rio Tietê, dentro de São Paulo ou de municípios vizinhos, causando prejuízos irreparáveis a milhares de famílias pobres.
Dependendo do volume aproximado de vítimas, humanas ou materiais, emissoras de televisão e jornais concedem espaço para as notícias. Medidas de emergência são adotadas. Sempre aparecem cestas básicas e promessas de roupas e de utensílios domésticos para cobrir perdas menores de caráter urgente. O prefeito dedica tempo para longas entrevistas. Promete a construção de moradias, mesmo sem saber o número e as dimensões das construções levadas pelas águas. Passadas as chuvas, a tragédia, como sempre acontece, cai no esquecimento até que novo alagamento venha a acontecer.
O Jardim Pantanal, localizado na Zona Leste de São Paulo, é apenas um dos muitos bairros anualmente assolados por enchentes. O nome é significativo. Jardim, diz o Dicionário Houaiss, significa terreno no qual se cultivam plantas ornamentais, arbustos, flores. Pantanal, por sua vez, é o pântano extenso, de grandes dimensões, ou seja, região de terras baixas e alagadiças, com águas permanentemente paradas. Edificar uma vila ou “jardim”, em terreno alagadiço, ou sujeito a constantes alagamentos, é algo inadmissível e só possível diante de criminosa omissão das autoridades públicas competentes.
Pois foi o que aconteceu com o \Jardim Pantanal. Acredito que há cerca de cinquenta anos, pouco mais, pouco menos, levas de imigrantes vindos de regiões pobres à procura de trabalho com ou sem registro em Carteira, tenham chegado a São Paulo. A primeira e mais urgente necessidade seria onde morar. Encontraram as várzeas do Rio Tiete e ali construíram os primeiros barracos. Com o tempo, o número de famílias se adensou, atraindo a atenção de vereadores e dando origem às primeiras associações de moradores.
Aquilo que no início constituía grupamento anárquico de barracos, cobertos com precários telhados improvisados de fibras compensadas, logo ganhou arruamentos e rede de energia elétrica, com o sugestivo nome de Jardim. O passar dos anos consolidou o bairro, a esta altura dotado de igrejas evangélicas, borracharias, lanchonetes, botequins, lojas de material de construção, supermercadinhos, salões de cabelereiros, manicures e barbeiros, oficinas mecânicas, pequenas farmácias e a inevitável presença de desocupados.
Assim surgiram e ganharam representação política centenas de favelas ou comunidades, em grande parte localizadas às margens da Guarapiranga, do Rio Pinheiros e do Rio Tiete, convertendo São Paulo em megalópole irrecuperável, do ponto de vista social e urbanístico.
Pressionado pela imprensa diante da última tragédia que se abateu sobre o Jardim Pantanal, o prefeito Ricardo Nunes, de maneira precipitada e sem cuidadosos estudos, aventou hipóteses tecnicamente insustentáveis como a construção de quilométrico dique, destinado a conter as águas do Rio Tiete, e duas outras envolvendo a remoção maciça dos moradores. Como observador dos fatos da vida política local, sei que, passada a temporada anual de chuvas, o Jardim Pantanal voltará à normalidade e a enchente será esquecida. Assim sempre acontece entre nós, diante de grandes calamidades.
São Paulo é cidade que regurgita problemas das mais diversas naturezas. A urbanização do Jardim Pantanal é apenas um deles. Assim acontece por todo o nosso país subdesenvolvido e pobre. Qual a cidade de médio ou grande porte que não cresce de forma desordenada e sem planejamento? Veja-se a antiga questão do saneamento básico, da falta de qualidade da assistência médica pública, ou da violência associada ao tráfico de drogas e ao crime organizado. Brasília, capital da República, é caso clássico de cidade planejada, cujo planejamento fracassou, com a degradação da periferia e o aparecimento de favelas.
O adensamento populacional urbano provoca a falta de moradias decentes para as camadas mais pobres. A ausência de controle eficaz pode levá-las a ocupar encostas e baixadas, com resultados dramáticos em épocas de excesso de chuvas, como já aconteceu em Petrópolis e no Rio de Janeiro.Desgraçadamente, a tragédia do Jardim Pantanal em breve cairá no esquecimento, até que outra, das mesmas ou maiores dimensões, volte às primeiras páginas dos jornais e ao horário nobre da televisão.