Carlos Aranha me apresentou a Vladimir Carvalho no final dos anos 1960, quando dava com a ajuda de Manfredo Caldas cursos de cinema emprestados por João Córdula, diretor da Ancine em João Pessoa e tio do artista plástico Raul Córdula. Ele fazia parte da leva de cineastas paraibanos como Linduarte Noronha, cujo documentário, Aruanda, mereceu um capítulo inteiro da nossa bíblia cinéfila, Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, de nosso ídolo-mor Glauber Rocha. Vladimir dizia que foi parceiro no filme, Linduarte negava. Sempre acreditei na versão de Vladimir. Sempre acreditei em Vladimir, conterrâneo do maestro Sivuca, de Itabaiana, sim, senhores. Mas ele nunca precisou provar essa afirmação. A obra posterior avalizou sua condição de maior cineasta paraibano com alguns curtas metragens magníficos como Romeiros da Guia e A Bolandeira, imortalizado no circuito comercial ao ser escolhido para abrir as sessões de exibição do longa metragem Abril Despediçado, de Waltinho Salles. Quem também não se lembra daquele filme? Da geração de Ipojuca Pontes, do genial Os Homens do Caranguejo, Vladimir, irmão do fotógrafo Walter Carvalho, dirigiu, entre outros, Vestibular 70 e Incelência Para um Trem de Ferro. O selo da qualidade de sua direção estava no excepcional retrato de alguns entre os maiores paraibanos de todos os tempos, casos de José Américo de Almeida, em O Homem de Areia, e José Lins do Rego no filme à altura do personagem O Engenho de Zé Lins. Mas ele nunca foi só um retratista de celebridades, comprova Conterrâneos Velhos de Guerra, sendo ele um deles, um de nós. Ou ao registrar de forma original temas populares, como foi o caso de Rock Brasília.
Meu caso específico com sua obra prima, O País de São Saruê tem duas peculiaridades que não resisto a incluir no que aqui tenho a contar. Certa vez Tasso Jereissati me deu carona no jatinho indo de Recife para João Pessoa para ser entrevistado a caminho de um comício em Pereiros, Ceará. Quando sobrevoamos o sertão do Rio do Peixe desatei a chorar feito um bezerro desmamado. Expliquei a Tasso: “nasci aqui embaixo”. E ali Vladimir filmou sua obra máxima, falando dos reinos animal (o gado), vegetal (o algodão) e mineral (o urânio), a partir do título de um clássico da literatura de cordel, O País de São Saruê, de João Camilo dos Santos, também autor de As Grandezas do Sertão. O diretor caprichou na escolha dos parceiros: o maior poeta vivo da Paraíba, Jomar Moraes Souto, escreveu especialmente para o filme um poema magnífico; o maior teatrólogo de nosso Estado, Paulo Pontes, narrou o filme; e Manoel Clemente, o diretor de fotografia, trabalhou de graça, o que era comum à época. O filme, iniciado sob o título O Sertão do Rio do Peixe, em 1966, era inicialmente um curta metragem, mas uma estação muito chuvosa forçou o adiamento das filmagens que foram retomadas em 1967, quando se incluíram novas cenas em 35 milímetros. E a terceira no final de 1970, ano de sua conclusão. A estréia, marcada para o Festival de Cinema de Brasília em 1971, teve de ser adiada por intervenção da censura da ditadura militar vigente. Oito anos depois, levantada a censura, o filme foi, enfim, foi apresentado no mesmo festival. Para isso concorreu a atuação benemérita do jornalista José Madeira, chefe do Departamento de Censura Federal na PF de São Paulo e que fazia parte de um grupo formado pelo teatrólogo Plínio Marcos, o jornalista J. B. Lemos, o delegado da Polícia de São Paulo Gilberto Alves da Cunha e o autor destas memórias. Anos depois, vim saber que Madeira foi demitido e perdeu o direito da aposentadoria ao ser revelada, ainda na ditadura, sua atuação na liberação do documentário e de peças de autoras consagradas como Ruth Escobar e Leillah Assunção, comensais esporádicas de almoços num restaurante na praça Dom José Gaspar, atrás da Biblioteca Mário de Andrade.
Em votação com dezenas de críticos e pesquisadores de cinema, organizada pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema, o filme foi eleito como um dos melhores documentários da história da sétima arte.
Para Isabel e para mim a consagração de Vladimir é justa, mas não ameniza a dor de sua ausência de homem reto, digno e talentoso de nosso convívio.
*Jornalista, poeta e escritor
Um conterrâneo velho de guerra como eu. Por José Nêumanne
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