Com algum grau de perplexidade observo jornalistas formulando pesadas acusações contra as queimadas que atingiram dezenas de municípios da região canavieira de Ribeirão Preto, Pontal, Sertãozinho. Alguns brigadistas morreram ao tentarem inutilmente apagar as chamas, outras pessoas ficaram intoxicadas. Dezenas de animais de criação foram vítimas fatais e centenas estão sem água e pastagens. Os prejuízos materiais ultrapassariam o valor de R$ 1 bilhão.
Não se disse, porém, que as queimadas fazem parte dos costumes herdados do período colonial. A cana-de-açúcar chegou ao Brasil em 1532, trazida da ilha da Madeira pelos irmãos Pero e Martim Afonso de Sousa, para a produção de açúcar no primeiro engenho movido a água, montado na região de Cananéia.
Feita por escravos, munidos de folhão, facão ou podão, a colheita braçal exigia prévia queima das folhas ou palhas, não apenas para que o trabalho fosse produtivo, como para evitar acidentes e eliminar o joçá, expressão dicionarizada com o significado de partícula que cobre as folhas da cana-de-açúca,r as quais, em contacto com a pele do trabalhador, provoca terrível comichão.
Queimar a vegetação era hábito dos indígenas, usado tanto para limpar terreno destinado ao plantio da mandioca, como para fertilizá-lo com as cinzas ricas em potássio. Os índios não o conheciam, mas sabiam o poder fertilizante das cinzas. A palavra dicionarizada coivara se refere à “quantidade de ramagem a que se põe fogo nas roçadas para desembaraçar o terreno e adubá-lo com as cinzas, facilitando a cultura; fogueira” (Dicionário Houaiss).
Nascido e criado na região canavieira de Capivari, lembro-me das grandes queimadas de talhões de cana, promovidas por usinas de açúcar e fornecedores da matéria-prima. Durante os períodos de safra, entre maio e novembro, o céu ficava carregado de fumaça e era possível ver ao a cana queimando, para ser cortada. A fuligem (matéria preta, gordurosa, na forma de diminutas partículas, oriunda da queima de algum combustível que se desprende e adere aos canos de chaminés e a superfícies em geral – Houaiss) cobria a cidade, se infiltrava pelas casas, enegrecia roupas que secavam ao sol, provocando a ira impotente dos moradores de Capivari e cidades vizinhas.
A única proteção contra a queima consistia na abertura de aceiro, “faixa de terreno que se limpou ou arroteou através ou em torno de herdades, matas, coivaras, etc., para evitar a propagação de incêndios; desbaste de terreno próximo a cerca de arame, para salvaguarda de queimadas” (Houaiss). Como proteção adicional, as usinas colocavam caminhão pipa, para combate às chamas que pulassem o aceiro.
A queima da cana foi prática habitual até a década de 1970, quando começam as ser adotadas medidas restritivas, até se tornar definitivamente proibida, como meio de proteção a animais silvestres e de defesa do meio ambiente. A introdução das máquinas colheitadeiras ocasionou o desaparecimento do boia-fria e da queimada, embora ainda se registrem alguns casos de pequenas lavouras onde foi posto fogo, para permitir o trabalho braçal.
Botar fogo em mata, para formar de pasto, ou em canavial, para facilitar o corte, soltar balões e fogos e artifício, jogar lixo em terrenos baldios, contaminar ribeirões e rios com dejetos industriais, pertencem ao pior lado das nossas tradições,
A natureza sistematicamente agredida cobra o seu preço. É o que acabamos de assistir no Rio Grande do Sul, com as enchentes, e em São Paulo, com as queimadas. A legislação protetora do meio ambiente é recente. Por ignorância, falta de responsabilidade, destemor da polícia e da justiça, indiferença em relação aos semelhantes, insensibilidade aos problemas gerados pela poluição, ainda são encontrados criminosos que caçam animais silvestres, engaiolam pássaros, poluem o ar, a terra e os oceanos com resíduos plásticos, esgotos, óleo e petróleo, emprego de agrotóxicos e queimadas.
Até quando o bicho homem será o seu pior e mais violento predador?
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Advogado. Foi Ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho.