Diz o art. 53 da Constituição Federal que “os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. A consolidação de determinadas opiniões decorrem da história. As instituições solidificam-se paulatinamente. Há uma primeira reação diante de uma aparente agressão. Depois, as posições entram em choque, são depuradas e se firmam como coerente com os ditames da democracia, da república e das grandes conquistas da humanidade.
Cícero disse, quando de seus discursos contra Catilina que ele devia ‘ser morto por ordem do cônsul” (Oração I, primeiro parágrafo). É que discursava no Senado romano. Era um cônsul, representante maior do povo romano no período da República.
O representante da população devia ser destemido. Sem peias.Com a evolução das estruturas estatais e de controle recíproco entre os poderes, surge a inviolabilidade que se não confunde com a imunidade. Imunidade tem conteúdo processual (diz respeito à disciplina de prisão e processo em relação a congressistas). A inviolabilidade “é a exclusão de cometimento de crime por parte de deputados e senadores por suas opiniões, palavras e votos” (José Afonso da Silva, “Comentário contextual à Constituição” art. 53). A saber, não há ato típico. Este é o comportamento descrito na lei em todos seus contornos. A previsão da inviolabilidade elimina este caráter e entende inexistente. Não ocorre o fato criminoso.
A garantia parlamentar guarda sintonia com os deveres do cargo. Não se pode mostrar timorato o deputado. Ele representa o povo. E, como tal, deve ter o destemor de afrontar poderosos e estruturas de pressão. Assim, pode fazer afirmações ainda que inverídicas e fruto de sua fantasia, mas que, em qualquer hipótese, não constituirão crimes.
De outro lado, o inciso XXXV do art. 5º da Constituição estabelece que a lei “não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Tem o Judiciário, pois, amplo poder de apreciação sobre tudo que estiver tipificado em lei e todo comportamento que possa causar lesão ou ameaça a direito.
Ocorre que, quando o parlamentar assoma à tribuna de uma das Casas do Congresso ele não causa lesão nem ameaça qualquer direito. Ele fala em nome da população. Ele é a boca do povo falando. E, investido em tal função não tem qualquer restrição em suas palavras, opiniões e votos.
A se admitir que o parlamentar possa ser processado por opiniões ou palavras que profira da tribuna da Casa, pode-se aceitar que seu voto seja revisto pelo Judiciário o que constituiria a substituição de um poder pelo outro.
Já no latim se diz : “ne sutor ultra crepidam”, ou seja, não vá o sapateiro além das sandálias, história encontrada em Plínio, o velho (“História natural”, XXXV, 85) em que um pintor indagou de um sapateiro se as sandálias estavam adequadas na pintura, e ele fez reparos que o Apeles, o pintor corrigiu. Em seguida, passou a dar palpites sobre outros aspectos da pintura e foi repreendido por Apeles – Não vá o sapateiro além das sandálias. Em bom direito, não vá o juiz onde não lhe compete. Restrinja-se à matéria para a qual é competente.
Por força da dicção constitucional, os parlamentares se colocam fora da possibilidade de serem alcançados pela perseguição penal. Como disse mestre Geraldo Ataliba “tudo que seja entendido como exercício do mandato, sua condição, complemento ou extensão, é coberto pela inviolabilidade d assim, amplamente, deve ser interpretado, em cada caso concreto” (“República e constituição”, RT, 1985, pág. 81). Há necessidade institucional de que os parlamentares devam exercer o mandato com independência e destemor.
É absoluta ou relativa a garantia constitucional? No caso da inviolabilidade entendo ser absoluta. Não há crime. É o que se depreende da dicção do art. 53. Entendê-la relativa é sujeitar o parlamentar ao alvedrio do ministro do STF. Ele ditará a regra, ao invés da Constituição. E pode ser alargada ou diminuída de acordo com o posicionamento político ou ideológico do magistrado.
Se pode ser processado por opinião ou palavra, igualmente pode ser processado por votos que dê no Congresso, como se afirmou. Aí fica pior ainda. Pode o juiz declarar nulo o voto de um parlamentar? O magistrado passa a legislar, se entender que o parlamentar extrapolou os limites de seu mandato. Mas, qual limite? Não há limite na expressão intelectual do representante popular.
E se o parlamentar se exceder e ofender a honra de alguém? Atinge-o com acusação falsa e palavras de baixo calão, além de hostilizar sua honra? Aí é que a interpretação se complica. A se aceitar limites nas palavras e opiniões, passa a se aceitar que o Judiciário possa ditar quando o parlamentar comete um crime. Há um limiar muito delicado a ser superado.
Isso impõe controle nas palavras e opiniões. Não é isso que diz a Constituição. Ela fala que o deputado e senador são invioláveis. Conduta que não admite tipicidade. Se não há tipo, não há crime.
Descabe ao Judiciário traçar os limites do comportamento parlamentar.