Muito se comenta que os ataques feitos por Donald Trump ao mundo, via aumentos extraordinários dos impostos sobre produtos importados pelos EUA, pouco têm a ver com aspectos econômicos ou comerciais. Minha impressão, inclusive, é a de que nada tem a ver com eventuais necessidades dos norte-americanos de se protegerem comercialmente ou de buscarem melhorias em sua arrecadação, embora esses propósitos possam também ser alcançados. E quando falamos de Brasil, mais notadamente, posto que o ‘fator político’, nas exigências impostas, tem uma preponderância muito maior quando comparado com o que se ‘negocia’ com os outros países.
Pelo que tenho lido e ouvido, tendo a acreditar que as atitudes do presidente americano são reações de quem sente (ou supõe) que terá, na medida em que o mundo se torna cada vez mais multipolar, dificuldades econômicas e geopolíticas cada vez maiores.
O Brasil por exemplo, ao utilizar o PIX, um novo sistema de pagamentos que funciona no País há quase cinco anos e que, ao propiciar a integração de mercados (1), ainda facilita que se convençam mais e novos parceiros a participarem, já que opera, e muito bem, fora do sistema do dólar e dos sistemas de pagamentos tradicionais, constitui-se, concreta e verdadeiramente, em algum risco para a “hegemonia dessa moeda no sistema financeiro e de pagamentos” atual?
Já está constatado que o PIX, por ser de fácil utilização e com menos burocracia, barato e considerado como a forma mais instantânea de pagamentos (à semelhança do “Brics Pay”, que juntamente com o Brics Clear e Brics Bridge, também baseados em tecnologias descentralizadas aceleraram a utilização de formas de pagamentos alternativos), aumenta as dificuldades para os sistemas de pagamentos atuais, nos quais o dólar é padrão. Vale relembrar que o sistema PIX não cobra taxas das pessoas físicas e ajuda, de forma efetiva, o processo de inclusão bancária da população.
O jornalista Philip Yang publicou, dia 21 pp, na Revista Piauí (“O Brasil e a encruzilhada da hegemonia americana”), artigo para explicar alguns dos principais motivos pelos quais o Brasil, para fazer frente à imposição de tarifas, precisa ser firme e preparar uma resposta que “seja verdadeiramente estratégica e soberana, e não uma reação imediatista ditada por interesses setoriais”. Segundo Philip, o governo norte-americano atual, em face de “uma crescente vulnerabilidade estrutural”, entre outros problemas, “tenta desesperadamente reforçar a demanda global por sua moeda e títulos” (grifos meus).
Todos sabemos que o extraordinário privilégio que os EUA têm com relação às moedas, é o fato de, além de ser o único País autorizado a emitir dólares, ter sua moeda como a mais usada em todo o mundo e se tornado padrão monetário para a quase totalidade das operações comerciais e financeiras do planeta. Desde a Conferência de Bretton Woods de 1944, os EUA, em face de seu poder político-econômico-militar, domínio geopolítico e estabilidade econômica, teve sua moeda alçada à condição de principal meio de troca global, reserva de valor preferencial e, portanto, centro do sistema financeiro internacional. Segundo os franceses, um “privilégio exorbitante”.
Entretanto, e sempre vale à pena lembrar, “esse privilégio”, somente poderia ser mantido caso os EUA cumprissem com algumas exigências inegociáveis, tais como a estabilidade na política e na economia, previsibilidade, responsabilidade fiscal, respeito ao Estado de Direito, superávits em seu conta corrente e produtividade crescendo a taxas acima da produtividade do ‘resto do mundo’. Quaisquer resultados diferentes poderiam significar não só uma queda do poder de compra do dólar, mas também dos valores dos títulos americanos.
Lamentavelmente os Estados Unidos ignoraram seus seguidos ‘déficits’ orçamentários. E mesmo assim conseguiram, por anos, em face de manobras monetárias bem elaboradas, embora suspeitas, ‘viver’ muito bem e financiar todas as atividades produtivas do País, fossem elas direcionadas para o consumo, para as despesas militares ou seus investimentos. Em 1985, por exemplo, fruto desse comportamento discutível, uma crise maior não ocorreu porque um acordo (Acordo de Plaza) manteve algumas das principais moedas de reserva do mundo, alinhadas ao dólar. Evidentemente, um dólar já mais ‘fraco’. A questão principal, nesse modelo, pergunta Philip, é saber “até quando a supremacia do dólar pode mascarar o crescente declínio relativo de sua economia real”. E, acrescento, principalmente nos momentos atuais, quando intervenções cambiais do tipo Plaza são quase impossíveis de serem adotadas.
É fato inconteste que há um declínio nas condições dos EUA perante o restante do mundo, quando se compara a situação atual com aquela do século passado (2), assim como das liberdades que caracterizaram esse País desde a 2ªGGM. O tradutor e ensaísta Luiz S. Henrique, ao escrever o artigo “Lembrando Orwell”, publicado no Estadão do último dia 27, não teve dúvidas: “Bloco nacional-populista, capaz de empolgar, sob a liderança de um demagogo, setores díspares da economia e da sociedade”, acelerou o declínio do próprio País, assim como “das liberdades liberais, sem as quais nós, cidadãs e cidadãos do Ocidente político, teríamos dificuldades de sobreviver, mesmo em meio à abundância de mercadorias”.
Philip, aqui já comentado, cita vários outros exemplos de eventos que diminuíram o ‘conforto’ norte-americano quando se analisavam o comportamento das moedas e do sistema monetário mundial. A Guerra do Vietnã, a crise no Governo Nixon, que decretou o fim da convertibilidade dólar-ouro, o aumento das competitividades do Japão e da Alemanha, com fortes perdas para a indústria norte-americana e a crise financeira de 2008, entre outros, foram momentos nos quais o dólar ‘correu sérios perigos’. E pior, Philip demonstra claramente que as providências adotadas pelos diversos governos de plantão, basearam-se, como aqui já escrito, em “manobras” monetárias.
Volto a repetir, as dificuldades atuais são muito maiores e essas “manobras” são quase impossíveis de serem realizadas, posto que o “lastro da economia real americana é visivelmente menor”, e a ascensão da China (3), criam outros e novos desafios.
Não à toa, em discurso inflamado, Donald Trump afirmou que esse ‘pilar’ – supremacia financeira do dólar – jamais será destruído e esta é, sem dúvida, “a verdadeira guerra” a ser travada. Pois é, se considerarmos que o déficit público americano é de quase 7% do PIB, que a dívida pública atual equivale a 124% do PIB (cerca de US$ 35 trilhões) e que juros anuais à pagar estão próximos do US$ 1 trilhão, “reforçar a demanda global por sua moeda e seus títulos” parece ser a providência mais importante. Não só fundamental, mas também essencial. Somente isso pode explicar essa narrativa, posto que demonstra a dificuldade que teriam os EUA se houvesse a substituição do dólar por qualquer outra moeda. Ressalte-se: a moeda norte-americana ainda é o principal símbolo e pilar do que resta da supremacia econômica norte-americana. De qualquer forma a solução, pelo menos para o Sr. Trump, está no protecionismo exagerado. Será?
Não só para Ronald Trump, mas também para inúmeros participantes de seu governo, parece que sim. É o que se viu nas palavras do Secretário do Tesouro dos EUA, Scott Bessent, quando afirma que o objetivo principal é usar a máquina do Tesouro para travar essa “guerra” nos mercados, empregando táticas especulativas que garantam a supremacia do dólar e o financiamento da dívida americana, custe o que custar para a estabilidade global (4).
Fato inconteste é que o comportamento do Trump e as medidas por ele adotadas, internas e externas, estão diminuindo a credibilidade e a confiança que o mundo depositava nos EUA, inclusive em seus “papéis e moeda”. Como escrito no artigo do Estadão do último dia 27, “A combinação de desordem nas contas públicas, instabilidade institucional e nacionalismo econômico é tóxica para a credibilidade de qualquer moeda” (“O império do dólar e seu maior inimigo”). Eu acredito que Donald Trump sabe disso e, portanto, tem medo. Nas palavras do economista e jornalista Fabio Gallo (Estadão de 26.07.25 – “Trump tem medo do que o Pix simboliza”): “O medo de Trump não é do Pix em si, mas do que ele simboliza e possibilita: um mundo onde o dólar é apenas referência e não estrutura de poder. Um ambiente onde os EUA não conseguem mais rastrear, tributar nem bloquear transações. É o fim do monopólio financeiro ocidental – por vias técnicas, não ideológicas”.
Não imagino, pelo menos ainda, à semelhança do que fez o jornalista Robert Reich, comparar Donald Trump “com os chamados homens fortes da década de 1930 – Hitler, Stalin, Mussolini e Franco”, conforme descreveu o jornalista e professor da USP Eugenio Bucci (“O ‘fascio’ do Tio Sam”, publicado no Estadão do último dia 24). Mas a conclusão de Bucci é, pode-se dizer, bastante intrigante: “Não, isso não é democracia. Isso não é nem mesmo um autoritarismo que procura se disfarçar de democracia. Isso é convulsão institucional prestes a se assumir como ditadura escancarada. Isso é um poder que, de forma consciente, deliberada e ostensiva, dispara ataques sucessivos contra as democracias organizadas do mundo. O Tio Sam empunha o ‘fascio’ e o Brasil é só mais uma de suas vítimas. O estrago político será maior do que o descalabro econômico” (grifos meus).
Não sei o que acontecerá dia primeiro de agosto. Pode ser tudo ou nada. Ou qualquer coisa entre essas duas situações. Muito menos sei o que acontecerá no futuro, o que me conforta como ser humano, mas não espero nada promissor. As incertezas aumentarão, principalmente se considerarmos que o comportamento de Donald Trump, com relação ao Brasil, é político e ideológico, e muito pouco comercial. Perseguição a Bolsonaro, como exemplo de uma das narrativas utilizadas, não condiz com a realidade e com os fatos, e em nada justifica sua pretensão de interferir nas decisões tomadas pelas instituições brasileiras formalmente constituídas, em especial, daquelas oriundas da Suprema Corte. Ou será, entre outros motivos, a participação do Brasil no Brics. Ou Trump quer punir o governo de esquerda do Brasil como forma de firmar suas convicções político-ideológicas junto à América Latina, conjunto de países no qual o Brasil é o maior e mais importante.
Mas sejam quais forem os motivos, o Brasil precisará reagir. E surge como fundamental, investir muito em suas relações diplomáticas, criar alianças táticas e evitar que se construam novas barreiras comerciais com o exterior, incluindo-se, e principalmente, com os países parceiros, apoiar todos os agentes de sua economia, mais notadamente aqueles setores diretamente afetados pelos aumentos das taxas de importações impostos pelos EUA, desenvolver e estabelecer um conjunto de políticas que incentivem a busca por novos mercados, diminuam nossa dependência junto às “Big Techs” (5) e acelerem alternativas estruturais. E, sem dúvida, negociar “à exaustão” com os norte-americanos, buscando um retorno, mesmo que parcial, à normalidade comercial e ao reestabelecimento do excepcional relacionamento que caracterizou, por mais de duzentos anos, o convívio entre os dois países. Vale, até, nas palavras de Philip (6), aqui já mencionado, “explorar as vulnerabilidades norte-americanas”. E, caso necessário, mesmo considerando que serão processos muito lentos, acionar a justiça nos EUA e nos diversos organismos internacionais existentes.
Como já li em alguns estudos, embora pareça um ‘sacrilégio’ para muitos, o Brasil precisará estabelecer um plano mais diversificado e estratégico para ter novos parceiros. Seja nas áreas comercial, financeira, tecnológica e militar, pois independentemente dos resultados alcançados no próximo dia primeiro, a incerteza e a desconfiança entre os dois países já estão instaladas, são verdadeiras e, como novos fatos, precisam de agora por diante serem consideradas.
Acima de tudo, entretanto, será preciso que o Brasil não ceda às pressões e não se submeta às ameaças que se fazem contra a soberania do País. É obrigatório que se evitem privilégios a interesses conjunturais ou de curto prazo, distantes dos reais interesses nacionais, notadamente aqueles de longo prazo.
(1) A China avança nos processos de integração de novos mercados, principalmente nas regiões da Asean e do Oriente Médio, através de sua moeda (“yuan digital”).
(2) Em 1990 os EUA tinham aproximadamente 21% do PIB global, atualmente tem um pouco mais de 14%. Queda significativa, portanto.
(3) China: ao se aproveitar eficientemente do processo de globalização, transformou-se em “fábrica do mundo” e o maior exportador mundial. Muito investimento, absorção efetiva das novas tecnologias desenvolvidas em todo o mundo e construção de uma infraestrutura sólida e abrangente (contempla todos os modais), foram algumas das providências.
Atualmente é a “principal parceira comercial de mais de 120 países, incluindo potências como Alemanha e Japão. Cerca de 70% dos países do mundo comercializam mais com a China do que com os Estados Unidos, uma inversão completa do cenário do início dos anos 2000”.
Segundo Philip, “no setor de serviços a China ultrapassou 1 trilhão de dólares (exportou 446 bilhões e importou 610 bilhões). Em termos absolutos, “o volume de serviços transacionados pelos americanos (quase 2 trilhões de dólares em 2024) é duas vezes maior do que o chinês, mas a distância nominal entre os dois países (0,95 tri no ano passado) vem se estreitando: em 2010 era superior a 1,3 tri”. “Mantida a tendência dos últimos quinze anos (China crescendo a aproximadamente 10% ao ano em serviços e os Estados Unidos a 4%), analistas projetam se igualarem entre 2040 e 2045 (horizonte obviamente sensível a avanços tecnológicos de parte a parte, câmbio, políticas de dados e restrições)”.
Não bastassem esses números, “estudo recente do Instituto Australiano de Política Estratégica (Aspi), a China vem liderando o processo de inovação em 37 das 44 tecnologias críticas que definem o nosso futuro. Detém 85% da capacidade de produção global de células de bateria, respondem por 70% das vendas globais de carros elétricos, por 50,6% do mercado global e por 80% da produção dos painéis solares do mundo em 2022”.
Além do que a China já construiu “48 mil km de ferrovias de alta velocidade – 70% da rede ferroviária desse tipo em todo o mundo – em quinze anos” e controla “90% da capacidade de processamento e refino de terras raras”. E ao formarem 1,5 milhão de engenheiros por ano (seis vezes mais do que os Estados Unidos), principalmente no campo da robótica e da automação industrial”, conseguem produzir “centenas de milhares de unidades de robôs por ano”.
(4) Garantir que as “moedas digitais (as stablecoins) sejam lastreadas em títulos do Tesouro americano” e que os treasuries consigam “criar uma demanda estrutural por esses papéis”, é o jeito de “amarrar o futuro das finanças digitais ao dólar” e garantir que os “Estados Unidos permaneçam no centro do sistema”.
(5) Mesmo sabendo das dificuldades para que isso ocorra, posto que além das redes sociais, as big techs fornecem serviços essenciais para a internet brasileira. Toda a cadeia de uso foi desenvolvida dentro e com a presença dessas empresas. Apenas como ilustração: no Brasil, com mais de 116 milhões de usuários digitais ativos, cerca de 86% da população brasileira faz uso das redes sociais. Não como ignorar que a maior parte dos sistemas instalados no Brasil (comércio eletrônico, bancário/financeiro, aplicativos diversos e muitos dos serviços públicos, entre outros), bem como as licenças para a utilização de outros sistemas/softwares também importantes, estão dependentes dos ‘datacenters’ norte-americanos.
(6) Pilares:
a) Construção de alianças táticas: é imperativo fortalecer laços com os numerosos países que também são alvo das medidas americanas, bem como com setores dentro dos Estados Unidos que se opõem a seu mercantilismo punitivo.
b) Exploração das vulnerabilidades do agressor: a resposta deve levar em conta a natureza anacrônica da política americana, que prejudica seus próprios consumidores e empresas.
c) Aceleração de alternativas estruturais: mais do que nunca, o Brasil deve liderar, junto aos parceiros do Brics e de outros blocos, o desenvolvimento e a integração de sistemas de pagamento e comércio independentes. Fortalecer e internacionalizar o Pix e a interoperabilidade com outras redes de pagamento instantâneo é uma ação concreta nessa direção.