O clássico Arte de Furtar, de autor desconhecido, dedicado ao rei de Portugal, Dom João IV, impresso pela primeira vez em 1740 pelo genovês João Baptista Lerzo, em sua oficina “estabelecida defronte do Loreto, a matriz dos italianos em Lisboa”, “não é apenas uma joia do português castiço ou um documento filológico”, mas, sobretudo, “um depoimento dos costumes portugueses no século XVII” (A Arte de Furtar e o seu autor, Afonso Pena Junior, Livraria José Olympio Editora, 1946, 1º volume, pág. 12).
Sem embargo de intermináveis investigações, o problema da autoria permanece ignorado. “Enquanto não se conheça o autor, não se sabe em que conta se há de ter, para efeitos históricos, as informações e comentários da obra. Se esta é do Padre Antônio Vieira, terá um peso o depoimento; se do linguarudo e pilherudo Tomé Pinheiro da Veiga, terá outro” (pág.10).
Seja quem for o autor, o livro traça perfil pouco airoso para os portugueses da época em que a célebre obra foi escrita. O Padre Antônio Vieira, com toda a sua autoridade de orador sacro, diplomata, historiador, filólogo, é outro que não fez boa imagem da gente portuguesa da sua época.
Veja-se como respondeu o santo jesuíta ao rei Dom João IV, quando este, referindo-se ao Brasil, lhe pediu parecer “sobre a conveniência de haver neste estado ou dois capitães-mores ou um só governador.
Escreveu o padre Vieira: “Eu senhor, razões políticas nunca as soube, e hoje as sei muito menos; mas por obedecer direi toscamente o que me parece. Digo que menos mal será um ladrão do que dois; e que mais dificultoso serão achar dois homens de bem do que um”. (Cartas. Coimbra. Imprensa da Universidade, 1925, vol. 1, pág. 414).
O escândalo do INSS nos faz refletir sobre a atualidade de A Arte de Furtar e do Padre Antônio Vieira. Afinal, como foi possível que, desde o governo Dilma Roussef, bilhões fossem sistematicamente subtraídos de magras aposentadorias e pensões, sob os olhos da administração do INSS, vale dizer do ministro da Previdência e do presidente da República?
É porque, como escreveu o anônimo autor de A Arte de Furtar, “não escapa do ladrão quem se paga por sua mão”
Descuidados aposentados e pensionistas, confiantes na honestidade do governo que elegeram, e dos homens e mulheres incumbidos pelos mesmos governantes de zelarem pela Previdência Social, receberam, ao longo de anos, parcos proventos a que fizeram jus após longas décadas de contribuições, sem saberem que estavam sendo metodicamente roubados.
Sindicatos, cooperativas e associações se locupletaram tranquilamente, convencidos da impunidade. Sindicalistas e ex-sindicalistas amealharam milhões de Reais, retirados silenciosamente, mês após mês, de aposentadorias e pensões, valendo-se da fragilidade de idosos e de pessoas debilitadas, que mal conseguiam o necessário para a compra de comida e de remédios.
O escândalo do INSS disputa com a Lava Jato a primeira posição no rol dos maiores da nossa história. Reside aqui o perigo de ser beneficiado pela morosidade ou supostas falhas no procedimento processual. Com milhares de vítimas, não é impossível que a demora trabalhe em benefício dos autores.
Cabe, portanto, à sociedade, à imprensa, à Ordem dos Advogados do Brasil, zelar pelo respeito à lei, para que mais uma vez não prevaleça a Arte de Furtar. “A omissão é o pecado que mais facilmente se comete e com mais dificuldade se conhece”, escreveu o Padre Vieira. Estamos cansados de presenciar a omissão diante do pecado da corrupção, permitindo que permaneçam livres e soltos grandes criminosos.
O escândalo do INSS oferece enorme desafio ao Ministério Público e ao Poder Judiciário. Responderão com agilidade e presteza ou permitirão que, com o passar dos anos, também caia no esquecimento?
Sabemos que os criminosos são pessoas jurídicas e físicas politicamente poderosas, dotadas de recursos financeiros. Nem por isso, todavia, devem zombar de milhares de aposentados e pensionistas vulneráveis.
Podemos acreditar na ação célere do Poder Judiciário?