Ano vai, ano vem, tudo é “como dantes no quartel d’Abrantes”. O Brasil abre a Assembleia Geral da ONU com o discurso de seu presidente, os candidatos às eleições municipais entoam o hino de promessas de sempre, o desgoverno paira sobre os protagonistas em todos os espaços, segue a vida aos trôpegos.
Um sentimento de mesmice invade a alma nacional. A luta política, que se trava na arena do processo eleitoral, é a teatralização de uma velha guerra que exibe perfis costumeiros, bordões gastos (como esse enjoado “fulano fez, fulano faz”) e nenhum elemento de diferenciação. O repertório de denúncias diárias, ao contrário do que seria de esperar, tem o efeito de anestesiar a sociedade. A pessoa se belisca e não sente dor.
A repetição cansativa de escândalos embrutece a sensibilidade, como se uma pesada camada de chumbo passasse a cobrir os nossos corpos. O Brasil pega fogo. O governo confessa não estar preparado para enfrentar a tragédia. Parece um velho trem chegando ao fim da linha, despejando fumaça por onde passa. Reativo, perdeu o comando da ação. Os governadores estaduais se assemelham a dândis no baile do meio do mandato, que mostra sinais de cansaço da orquestra. Parlamentares correm pressurosos ao balcão das reclamações para saber se suas emendas chegaram aos currais eleitorais.
O governo Lula III começa a ser atacado por inação. E nem pode berrar alto porque é refém de três barbáries que ameaçam a precária governabilidade: as barbáries tecnocrática, política e gerencial.
A barbárie tecnocrática é responsável pela imprevisibilidade e improvisação do Governo, pela departamentalização da eficácia econômica e pelo desprezo ao cinturão político. O excesso de gastos pode inviabilizar o terceiro mandato. A barbárie política é o balcão das trocas. Um governo que anda na corda bamba de apoios que vão e vem. E a barbárie gerencial, associada aos vícios anteriores, consiste em ignorar a eficiência e a eficácia organizacional como elementos complementares básicos do manejo político e econômico. O excesso de ministérios não tem muito a mostrar.
Lula patrocina, em maior ou menor grau, cada pedaço dessas três barbáries. E o resultado aí está: a baixa capacidade de governo, o que comprova a tese muito difundida de que os dirigentes do nosso continente latino-americano, apesar de qualidades pessoais, têm dificuldades de lidar com a complexidade do Governo. A pior gestão, dizem os estudiosos de política, é aquela que consome o capital político do governante sem alcançar os resultados anunciados e perseguidos e isso ocorre por mau manejo técnico. Os dirigentes esquecem os compromissos e as demandas populares, esquecem de fazer o balanço da gestão e, principalmente, não a projetam para o futuro.
Os políticos, por sua vez, aproveitam-se das circunstâncias para tirar proveito. A crise passa a ser oportunidade para aumentar o capital. O Parlamento torna-se um amplo confessionário de pedidos. Na esfera do Executivo. os governadores, no meio do mandato, parecem desmotivados. Já deram o gás que tinham de dar, suas equipes deitam-se na cama do ócio, enquanto os círculos mais íntimos locupletam-se de benesses. A reta final da administração precisa receber altas dosagens de oxigênio e vitaminas de energia.
A tecnocracia federal, essa também, precisa ser submetida a um forte impacto. Está anestesiada. Não ouve o grito rouco das ruas. Está hibernando em densa e fria camada de gelo. Procurar a bússola perdida, caminhar na direção correta, processar com eficácia as ações, ter capacidade para gerenciar problemas e encontrar soluções, evitar fricções irreparáveis, entrar em regime de mutirão, buscar intensamente o foco – essa é a alternativa que resta aos governantes. Só assim poderão despertar os sentimentos adormecidos da sociedade e gerar novas percepções.
De tanto olhar a escuridão, o olho se acostuma a olhar para o nada. E não percebe os vazios do ambiente. É mais ou menos assim o olhar dos governantes e políticos. Há imensos vazios no espaço social. Por isso, os eleitores estão distantes dos velhos atores, a uma semana do pleito de 6 de outubro. Quem surgirá encarnando a voz da autoridade, o dom do equilíbrio, as aspirações mais legítimas da população, a força moral? Babel de linguagens tortuosas e bordões de promessas mirabolantes, quem deverá dar o tom é o clamor da indignação social. O povo continua a esperar que os figurantes eleitos cumpram seu dever.
Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político