Imagine uma nação desenvolvida, berço de cientistas, de filósofos e teólogos que modelaram a ética do mundo ocidental, de artistas de todas as expressões, de grandes compositores, de religiosos que moldaram o cristianismo desde o princípio da idade média, passando pela Reforma.
Pense em uma nação com ricas bibliotecas e museus, com uma indústria cinematográfica florescente e grandes diretores, uma culinária reconhecida, com as melhores estradas do mundo. Pense em uma nação com um parque industrial pesado, siderúrgicas modernas, líder em manufatura de precisão, uma indústria química de ponta e automóveis que representam o sonho de consumo de gerações.
Pense agora em uma nação surpreendida pela derrota na guerra, humilhada em seu orgulho nacional, que empobreceu e nada mais podia oferecer ao seu povo senão dor, vergonha, altos índices inflacionários, fome, desemprego e miséria.
Imagine que nesta nação vicejavam, desde há tempos, ideias extremistas, que atribuíam a um povo em particular toda sorte de desgraças. Essa nação não estava sozinha nesse sentimento, pois em muitas nações as mesmas ideias falaciosas se desenvolviam. Mas ali encontravam eco numa juventude sem esperança e com sonhos de superioridade e grandeza, disciplinada e aguerrida, que ansiava por reconstruir a glória nacional, estribada em mitos da antiguidade, tradições inventadas que levavam aquela geração a sonhar com o retorno a um tempo de glória idealizado que, na prática, nunca existiu.
Essa nação, entretanto, levou ao poder, sempre pelo voto livre, um grupo, crescente a cada eleição, de líderes que, na busca do renascimento nacional, intentavam colocar em prática todas aquelas ideias perversas que círculos da sociedade vinham gestando.
Não poderiam ser acusados de hipócritas, pois essas ideias nuca foram ocultadas: foram claramente expressas na autobiografia política de seu líder maior, quando cumpria pena de prisão por um golpe de estado fracassado, contra o governo democrático vigente.
E eles chegaram ao poder.
A princípio, o grupo escolhido como bode expiatório da desgraça nacional não se incomodou. Nesse grupo, havia heróis de guerra, que defenderam a nação com armas e com seu sangue, havia banqueiros e profissionais liberais, professores e artistas.
– Não, conosco nada acontecerá, esta é uma nação civilizada e tolerante, é a nossa amada Pátria, Pátria de nossos pais e avós! – diziam, quando instados a sair enquanto fosse tempo.
E se recusaram a partir, quando ainda tinham a oportunidade.
As restrições começaram de modo quase imperceptível: as crianças não mais poderiam frequentar as escolas públicas, eles deveram deixar as universidades e o serviço público. E a marcha da insensatez prosseguiu.
Agora não mais poderiam frequentar clubes e espaços públicos, deveriam deslocar-se o estritamente necessário, devidamente identificados por um sinal amarelo costurado à roupa e sempre pela sarjeta, pois as calçadas deveriam ser reservadas aos membros da autodenominada “raça superior”. E a escória nunca poderia superar seus Senhores, Inclusive em altura.
Não mais poderiam ter seus próprios negócios, apresentar-se como artistas em público, frequentar restaurantes ou utilizar a rede pública hospitalar. Não mais poderiam realizar os chamados “casamentos interraciais” nem deixar herança “interraciais”. Praticar tais crimes era passível de prisão e expropriação de bens. E todos foram cadastrados.
A marcha prosseguiu. Concentrados em bairros reservados, tiveram de abandonar seus bens e seus lares, rapidamente apossados por intrusos e invasores.
Em uma noite de terror, o mundo virou de ponta cabeça. Seus estabelecimentos foram destruídos e queimados, seus bens arremessados à rua, eles foram atacados por bêbados violentos fardados de cáqui, que riam enquanto arrastavam suas filhas pelos cabelos, os espancavam e matavam, sob o olhar complacente de membros de uma força policial inerte, proibida por ordens superiores de agir em sua defesa.
Mass – pensavam eles – nosso Líder é decente, nada sabe sobre isso. Senão ele jamais permitiria! – Mas ele sabia. E permitiu.
Depois, vieram as deportações, os campos de concentração. A morte.
A seleção visava identificar os aptos para o trabalho. Os demais, peso morto – velhos, crianças, deficientes de toda ordem – que somente serviam para tomar sopa de repolho e consumir o orçamento da nação sem nada produzir, esses foram sumariamente eliminados.
Mas, havia um problema: executar prisioneiros a tiros era caro e pessoal demais. Os soldados olhavam para suas vítimas e seus olhares se cruzavam com os olhares apavorados de mães abraçando seus filhinhos, protegendo seus corpos frágeis com seus próprios corpos, jovens que, mesmo nas fossas de fuzilamento, preservavam seu orgulho, encarando os olhos de seus carrascos, velhos em oração. E isso era péssimo, porque alguns soldados passaram a beber em demasia, outros se desequilibraram emocionalmente e outros, mesmo sabendo das consequências que sofreriam, se recusaram peremptoriamente a participar.
Os burocratas concluíram que era preciso criar um sistema mais impessoal.
Tentou-se inicialmente o monóxido de carbono. Mas esse processo gastava gasolina e os efeitos eram duvidosos. Quando as carrocerias dos caminhões eram abertas, ainda havia alguns sobreviventes teimosos, que insistiam em não morrer. E era uma visão muito macabra, o cheiro insuportável, pois a morte por CO2 liberava seus intestinos e aquilo ficava uma fedentina.
E outro problema. O que fazer com aqueles cadáveres?
Para tanto, acionou-se a inteligência nacional. Grandes conglomerados químicos industriais, cientistas, engenheiros, médicos foram convocados a contribuir.
Até se aperfeiçoar o modelo.
Os cadáveres formam desenterrados, empilhados e queimados.
E em dado momento, a máquina estava azeitada. Os trens chegavam de todas as partes do continente, lotados de pessoas sem esperança.
Eles desembarcavam na gare, ao som de música clássica. Imediatamente eram classificados. Os sãos, com trajes identificados e numerados, cabeços raspados (era preciso evitar infestação de piolhos) eram direcionados para os alojamentos, onde dormiriam em catres de madeira.
Todos os dias, recebiam um pedaço de pão e um prato de sopa rala de legumes. Seus captores lhes reservaram, após meticulosos estudos tayloristas de tempos e movimentos, um lapso de cinco minutos para aliviarem suas necessidades fisiológicas. Periodicamente, um banho escaldante de dois minutos, quando voltavam ao ambiente externo, ainda que estivesse nevando, recolocavam suas roupas e seguiam para o trabalho, segundo suas aptidões. Sim, pois profissionais sofisticados eram valorizados e trabalhavam em ambiente fechado – até serem executados por um guarda bêbado ou simplesmente para quebrar a rotina. Os de baixa qualificação, esses iam drenar pântanos, quebrar pedras, carregar peso.
Conter essa massa humana era desgastante e indigno de alguém que pertencesse a uma “raça superior”. Por isso, mediante pequenas concessões (um pedaço de pão ou duas colheres de sopa a mais, por exemplo), pessoas do próprio grupo oprimido eram escolhidas como guardas. E eles e elas trabalhavam com afinco para bem cumprir sua missão, organizando, ofendendo, desumanizando, espancando. Também se buscavam prisioneiros de outras etnias, que odiavam esse povo, ou ainda delinquentes, estupradores e assassinos, que se compraziam em abusar dos prisioneiros, permitindo que os Senhores mantivessem limpas suas mãos e suas consciências. Afinal, os Senhores – homens e mulheres – não eram selvagens, mas pais e mães extremosos que, após o expediente, rolavam no tapete da sala com seus filhos, reviam suas lições e os ensinam a nadar e a andar de bicicleta, passeavam com seus cães e ouviam música erudita, degustando uma bebida reconfortante. Instalara-se, segundo Arendt, a banalidade do mal.
A solução chamou- se Zyklon – B, um pesticida a base de ácido cianídrico e nitrogênio.
As vendas mostraram-se muito lucrativas, estimulando a indústria e o empresariado a produzi-lo. Espaços cada vez maiores foram construídos. Pessoas eram conduzidas passivamente para essas câmaras soba a alegação de que iriam tomar um banho de desinfecção. No caminho, um jardim, flores, pequenos animais. Era preciso manter todos calmos para evitar pânico ou rebelião, o que comprometeria a eficiência das quotas de produção diária. Eficiência era a palavra de ordem. E registros meticulosos de eficiência seriam analisados por burocratas e poderiam implicar na promoção dos dirigentes, ou seu rebaixamento. Todos se esforçavam, pois havia uma carreira profissional em jogo.
Na antecâmara, todos e todas se despiam. Os cadarços de seus sapatos eram amarrados aos pares, para serem recolocados após o “banho”.
O Zyklon – B era introduzido na câmara por um evento no topo, por um profissional treinado, usando máscara de proteção. Em instantes, seu efeito resolvia a questão. A câmara era aberta e um grupo de prisioneiros fazia a seleção dos espólios., Recolhiam pontes e dentaduras, arrancavam dentes de ouro, aproveitavam óculos, próteses e cabelo, vasculhavam os orifícios do corpo (porque sempre havia algum preso que tentava ocultar bens). Tudo era reaproveitado. Outra equipe removia os corpos, utilizando grandes tenazes, em macas para os elevadores. Outra equipe cremava os corpos em fornos. Um não sabia claramente a etapa que o outro cumpria, de modo a evitar culpa. Mas a cada três ou quatro meses tudo se resolvia, quando os servidores também eram gaseados, eliminando testemunhas. E tudo recomeçava. As cinzas, utilizadas como adubo dos campos de repolhos. Que serviam para alimentar o campo.
O curioso é que essa fórmula deu certo. Um só introduzia o gás numa abertura. O outro, selava a porta da câmara e saia. O outro abria a câmara e arrastava mortos para fora. O outro só selecionava pertences. O outro só recolhia pertences. O outro só removia os corpos. O outro os cremava. O outro removia as cinzas. E o outro espalhava cinzas como adubo pelo campo. Todo alegavam desconhecer o trabalho dos outros e as fases completas do trabalho. Assim, ninguém era culpado, pois todos só estavam cumprindo ordens.
Em consultórios do campo, doutores em medicina e professores universitários testavam os limites da reprodução humana, removiam úteros, necropsiavam bebês e gêmeos logo após tirar suas vidas, inseminavam bacilos para verificar o efeito da doença em pessoas sãs e tinta nos olhos para observar a mudança de cor da íris.
Com rigor e interesse declaradamente científico, trajes meticulosamente limpos e cadernos de anotações, afogavam e congelavam prisioneiros para assistir os efeitos do frio sobre pilotos de caça que viessem a cair em mares gelados. E tentavam reanimá-los, por vezes colocando-os entre os corpos quentes de prisioneiras nuas. Se não desse certo, sem problemas. Cobaias havia aos milhares. Por isso, amputavam membros de gêmeos, tentando reconstruí-los no coto do outro. O pior que poderia acontecer era a gangrena, mas também isso era objeto de estudo.
Quando, finalmente, os campos foram libertados, o mundo descobriu estarrecido o que estava sendo feito ali, a milhões de pessoas. Registros abundantes foram feitos, pois o cenário era tão surreal que se corria o risco de, em meio século, as novas gerações acharem que tudo aquilo fora inventado por escritores sádicos de mente fértil.
No curso da existência humana, marcada por guerras, pela violência, pelo derramamento de sangue de inocentes e pela destruição de cidades, houve bem sucedidos esforços para eliminação sistemática de pessoas pelo simples fato de haverem nascido em certo lugar, professarem determinada religião ou opção política. A história é coalhada de exemplos. Os massacres de protestantes, eslavos e minorias étnicas na Europa, os progroms contra os judeus na Rússia czarista, o genocídio dos armênios pelo império otomano, o Holodomor ucraniano de Stalin, o genocídio no Congo Belga, o massacre dos índios na colonização da América, na Patagônia e no oeste americano, os massacres de Pol Pot no Camboja, os hutus contra os tutsis em Ruanda, a guerra da Bósnia, o genocídio dos curdos por Saddam Hussein.
Entretanto, nada, em tempo algum, pode ser comparado ao Holocausto. Por sua precisão, sua meticulosidade, pela mobilização de forças de uma nação inteira a serviço da morte, pela banalidade com que pessoas comuns se envolveram nisso e, sobretudo, por seus resultados.
Referir-se a fatos pontuais, a título de argumento retórico, como genocídio, ou comparar esses fatos ao Holocausto, é um discurso que revela ignorância, demagogia ou má fé, uma péssima escolha, uma violação à ética, um desrespeito à memória e à decência humana, pois reduz a tragédia do genocídio e o horror do Holocausto a uma dimensão muito menor do que aquela em cujo patamar se encontram. E de onde nunca devem ser retirados.
Palavras tem força e sentido preciso. É preciso que se reserve o uso das palavras à sua real dimensão, em respeito à memória das verdadeiras vítimas inocentes de genocídios e do Holocausto. Não de um holocausto. Mas DO HOLOCAUSTO.
São Paulo, 21 de fevereiro de 2024
Por ocasião do 89.º aniversário da tomada de Monte Castelo
pela Força Expedicionária Brasileira – FEB