Dentre às diversas liberdades garantidas constitucionalmente está a liberdade de expressão, consubstanciada na livre manifestação do pensamento, da atividade intelectual, artística, científica e da comunicação, outorgada a todos, brasileiros e estrangeiros que estejam em território nacional, o que marca a nossa sociedade como democrática, onde deve reinar a pluralidade de pensamento e, consequentemente, a manifestação de idéias e valores divergentes, sem restrição alguma, sem interferência estatal, tendo acesso, sem embaraço, as fontes de dados, vedada toda e qualquer form de censura, seja política, ideológica, ou artística, como previsto no artigo 220, § 2º da Constituição Brasileira. Afinal, a censura é exacerbação do poder de polícia, admissível em caráter emergencial, mas com o cuidado de não funcionar como instrumento a serviço de posições políticas ou ideológicas. Por isso mesmo recomenda-se a vigilância da cidadania no resguardo aos direitos fundamentais, como deixa registrado o Dr. Antonio Luiz Miretti, no artigo por ele escrito na coletânea aqui já citada, onde diz com propriedade que a linha direta para a censura é a restrição.
As primeiras restrições geralmente direcionam-se à imprensa diante da dependência governamental da mídia, via concessões e impulso financeiro. E como a liberdade de imprensa é corolário da liberdade de expressão, a primeira consequência reflete-se de imediato nos cidadãos que, sem informações verdadeiras perdem até mesmo o direito de reclamar ou divergir do que se passa na vida social e política do país.
A Constituição de 1988 foi pródiga em garantir a liberdade de expressão, e grandiosa em sancionar os abusos e excessos, ao prever o direito de resposta, espécie de desmentido, e indenizações por danos materiais, morais ou da imagem, podendo-se então afirmar que o direito à liberdade de expressão não é ilimitado, sendo de absolut coerência democrática coibir os abusos e excessos, especialmente quando constatar-se a intenção de atingir outrem, injustificadamente, com injuria, calunia ou difamação.
O Brasil, país de tradição pacífica, teve no curso da sua história dois longos períodos de absurda restrição às liberdades de expressão e de informação, espécies de irmãs siamesas que caminham juntas, formando o eixo da democracia. Poucos brasileiros ainda podem ter lembrança viva, embora presentes estejam o fatos na história do país, durante o Governo de Getúlio Vargas, quando foi implantado o Estado Novo em 1937, ditadura que se prolongou por oito anos, até 1945. Vargas governou com amplos poderes, fechou o Congresso, extinguiu os partidos políticos, perseguiu seus opositores, censurou a imprensa e reduziu drasticamente os poderes do Judiciário para praticamente governar sozinho,.
O segundo período está ainda bem perto das nossas atuais lembranças, ocorrido por ocasião do Governo Militar em 1964. Mais uma vez foram atingidas as liberdades garantidas efetivamente na Constituição de 1946, desrespeitada sem comtemplação pelos militares e golpeada a liberdade de expressão mais uma vez.
Foi proibida toda e qualquer forma de manifestação de pensamento, credo e/ou ideologia política, no momento em que atingia o Brasil o seu apogeu econômico e de desenvolvimento, sendo montado um cruel sistema de repressão, o que só mudou ao advento da Constituição Cidadã em 1988. Esta segunda restrição, conhecida como sendo “Os Anos de Chumbo” foi muito difícil, como pôde testemunhar a geração dos anos sessenta, algumas desmaiadas pelo tempo mas presentes, outras esquecidas pela alegria de termos uma Constituição Cidadã, há trinta e cinco anos que, embora sem a perfeição desejada, veio como um bálsamo afastar a dura escalada da intolerância política. Com ela passamos a construir uma nação interessada nos direitos da pós modernidade, pregando a necessidade de se construir um pais mais igual, preservando o meio ambiente, respeitando a diversidade e avançando na cidadania.
O Constituinte brasileiro buscou os rumos da modernidade e tudo mudou de repente. Cai o Muro de Berlim e com ele o símbolo maior da Guerra Fria e o fim da União Soviética. Abrem-se as fronteiras para as liberdades democráticas e tudo isso ensejou a chegada de uma nova era.
O professor e jornalista Delci Lima, ao mencionar no artigo que escreveu na coletânea de textos intitulada “Liberdade de Expressão e Direito à Informação”, o símbolo maior dessa era, a internet, disse com propriedade: a internet chegou para todos, dando voz a quem não conseguia falar, mostrando um mundo inteiramente novo para quem não o conhecia, cabendo aos setores públicos e privado garantir a divulgação das regras de utilização, sem críticas ou retaliações, respeitando a liberdade individual, porque liberdade de expressão e o direito à manifestação do pensamento não são absolutos, precisam de regulamentação.
Uma das preocupações da Constituição Federal de 1988 foi libertar o Poder Judiciário de um subjugo secular ao Executivo, como passou a acontecer em alguns países e em particular na Alemanha do Terceiro Reich, possibilitando livrar a nação de mandamentos legais oriundos do Legislativo, mas incompatíveis com a Lei Fundamental inserida na cultura do povo brasileiro, funcionando o Poder Judiciário como o intérprete político da Lei Maior.
A idéia foi formar uma Corte Constitucional para o controle das ações políticas, ou seja, o Supremo Tribunal Federal seria o Guardião da Constituição, decidindo em controle concentrado as ações chamadas constitucionais, enquanto o controle difuso do direito ficaria a cargo do Poder Judiciário distribuído em instâncias, tendo na sua cúpula um Tribunal Superior criado para o fim de uniformizar o direito federal, abaixo da Constituição. E assim foi criado o Superior Tribunal de Justiça, por isso mesmo chamado de Tribunal da Cidadania.
Pela força tradicional e moral da Suprema Corte, o projeto arquitetado pelo constituinte cedeu às exigências dos ministros maiores e o Supremo Tribunal Federal manteve-se à frente de todos os questionamentos e de todos os litígios do país, em controle difuso e concentrado, com o direito de avocar processos, dizer o que é ou não é matéria constitucional, ter o controle dos demais poderes da República, sem a contra partida de responder por seus atos ou desatinos. Ele passou a dar a última palavra, desde uma simples briga entre vizinhos , até às divergências partidárias e as mais íntimas e responsáveis divergências políticas.
Assim caminhou por trinta e cinco anos, mostrando claramente a expansão do seu poder de mando e domínio a cada dia, assumindo um protagonismo que o fez midiático quando se instalou a TV Justiça. O poder exacerbado do Supremo, como já previam alguns cientistas políticos, acabou por romper a barreira das linhas que lhe foram traçadas na Lei Maior e o fez abandonar a lógica que norteia o Poder Judiciário em qualquer país democrático, o respeito a lei formal e material, vinda de um parlamento eleito pelo povo, para aderir e passar a decidir pela lógica política, de acordo com o seu querer e os seus interesses. Os profissionais das áreas jurídica e jornalística, principalmente, foram os primeiros a sentirem de perto as mudança, preocuparam-se com as consequências do que estamos vivenciando. Mudou a postura sóbria dos julgadores, divergências e discussões vieram a público pela TV Justiça, antecedendo a uma mudança de rumo ainda mais profunda quando a Corte, abandonando a lógica de um Judiciário consentâneo com a lei formal e material, só afastada com embasamentos jurídicos e principiológicos, adotou uma lógica política e ideológica. A Suprema Corte parece não mais acreditar ser possível ao país caminhar pelos trilhos da constitucionalidade, sendo necessário criar atalhos, desprezar os caminhos insertos na Lei Maior.
E assim foi mudando a jurisprudência tradicional da instituição, respeitada, observada aplicada por todas as instâncias, guiadas pelos controles legais dos recursos especiais e
extraordinários. Dizendo e desdizendo-se, perderam-se em fatos e narrativas de tal forma que foi preciso alterar o que de mais seguro tinham os jurisdicionados: a coisa julgada. E assim
quebrou-se a espinha dorsal do Poder Judiciário quando sua cúpula, o Supremo Tribunal
Federal perdeu o seu referencial: a lógica jurídica a partir das leis nascidas no Poder Legislativo, eleito pelo povo, desprezando os mecanismos existentes para dele controlas
os excessos, ilegalidades ou mesmo inconstitucionalidades.
De forma severa tem exigido dos jurisdicionados e do parlamento respeito absoluto às suas decisões, mas comporta-se sem nenhuma obrigação de respeitar os demais Poderes, seja em suas competências constitucionais, seja em suas regras de decoro institucional, firmadas como garantias, seja em relação aos jurisdicionados que são desrespeitados como cidadãos, eleitores e naturais críticos do poder que deveria servi-los
Nesse mar de incertezas seguem todos, cabisbaixos e amedrontados: o Legislativo transformado em um cordato servidor, temendo a força do julgamento dos seus processos reunidos no Supremo seu foro especial, contentando-se apenas com as emendas parlamentares em recompensa. O Executivo, totalmente vulnerável por ser devedor do cargo que ocupa, como propalam os Senhores Ministros sem nenhum pudor.
A mídia amordaçada pelos contratos de concessão da atividade e pelo temor de destruir um patrimônio construído a duras penas para o exercício de uma nobre atividade, cumpre ordens e afasta-se a cada dia da sua função maior: informar a verdade. E o povo a quem a internet deu voz, está fadado a perdê-la, pela insistência com que se diz, sem recato algum, que o direito de expressão no Brasil foi sepultado.
Perdemos a segurança jurídica, perdemos a paz, perdemos a nossa confiança na última trincheira que dispõe um pais democrático, onde vai o cidadão de bem buscar a recomposição do seu direito agredido, perdemos o nosso Supremo Tribunal Federal e estamos perdendo a NOSSA VOZ.
Brasilia fevereiro de 2024
Eliana Calmon
advogada