Um dos maiores gênios de todos os tempos não tem sido reconhecido seja no ângulo da pintura, seja no da literatura especializada. Bosch é holandês. Parece que a família era feita de artistas. Deve ter sido religioso, por força das pinturas deixadas. Viveu no final da Idade Média (nasceu perto de 1450). Um mundo de lendas, bruxaria, anjos e diabos que se misturavam em crendices de toda esPerto de sua época Erasmo escreveu “Elogio da loucura “, Leonardo da Vinci teve suas visões, Sebastian Brant escreveu “a nau dos insensatos” toda sorte de imaginação diabólicas e cristãs permeavam a mente dos escritores, pintores e escultores.
Diz-se que o surrealismo pontificou com Dali, Magritte e Max Ernst na pintura, Buñuel no cinema e Breton na literatura e que tais gênios buscaram inspiração em Freud. Este ao descrever os conflitos da alma, as pulsões e os sonhos revelou um mundo que poucos conheciam. Criam-no existente, mas o haviam desnudado em todos seus aspectos.
O surrealismo trazia à luz, então, aspectos do inconsciente. Os seres humanos não conheciam os segredos da alma. Sonhos eram reveladores de comportamentos. Desejos eram os motores das condutas. Pulsões comandavam os homens.
Parece que ainda se estudou Bosch adequadamente para saber o quanto ele conhecera dos labirintos humanos e das almas. Sentimentos não reveladores de racionalidade e impulsos desconhecidos eram o que haviam no interior do homem.
Farei análise de apenas um de seus quadros, talvez o mais famoso: “O jardim das delícias terrenas”. É uma pintura que tem três momentos. O central é o jardim das delícias terrenas, ladeado do “paraíso terrestre” e à direita o “inferno”. A dor era o resultado final que alcançaria o pecador. No painel central os prazeres da carne são dignificados. Explodem sem qualquer sentimento de culpa. Símbolos eróticos ornamentam o quadro. A maioria explora as delícias do sexo. Mas, os seres humanos se misturam com peixes, animais, pássaros e todos fazem parte da tremenda orgia. O amor era livre. Homens, mulheres e animais se misturam em gostosa orgia.
Misturado a tudo há estranhas frutas, formas ovoides, tudo misturado em acrobacias sexuais. No centro da pintura central há um correr de água ou um lado onde mulheres nuas brincam ao lado de homens a cavalo e animais. Pássaros gigantes, formas ovais semelhantes a minas marítimas, casas estranhas, homens e mulheres, todos nus, passeiam em cavalos, porcos e com eles se misturam centauros. No centro do lado, uma esfera com uma torre pontiaguda parece coordenar o quadro, liberando-o de qualquer censura.
Alguns montam grifos (animais fabulosos) e cavalos com galhos na cabeça. A maçã, fruta bíblica do pecado é o estimulante para todos. Uma águia parece segurá-la. As mulheres seguem em direção aos homens, como símbolos da luxúria. Um casal no interior de uma bolha parece identificar o máximo da sensualidade. A coruja representando a inteligência e o conhecimento do mal. Pássaros gigantescos. Um homem que segura seus genitais com uma framboesa.
Vê-se que há não só o simbolismo presente, em que as imagens refletem diversos sentimentos. Mas, basicamente, há uma carga forte de surrealismo, a representar todos os afetos da alma. O despertar de desejos contidos pela sociedade. Paixões reprimidas. Instinto sexual recriminado. Tudo explode no quadro de Bosch.
É a antevisão da filosofia espinosana. É o precedente de Freud e a indicação do caminho para os grandes surrealistas futuros.
Ao lado esquerdo está o “paraíso” representado por animais, Adão e Eva juntamente com o criador e inúmeros animais, pássaros e animais fantasiosos como o unicórnio. Estranhas criaturas completam o quadro. A árvore do conhecimento.
Do lado direito há o “inferno”, representado por um sapo humano que parece a tudo dirigir, objetos musicais que representam a arte. Ao centro, há um objeto extremamente estranho, em forma oval, mas com rosto humano, uma orelha sendo cortada ao meio. Os pecados estão aí representados, a gula, o orgulho. O conjunto é tenebroso.
Hieronymus Bosch, com tal quadro, traz-nos à realidade. Ele retratou o mundo como ele é, cheio de defeitos, de desejos, de contradições, de sexualidade, de agressão à natureza, de conflitos entre os homens, etc. A feiura do mundo, suas contradições, a morte como apanágio da vida. Confronto eterno entre Eros e Tânatos. A decadência. A perdição. Frustrações. Má compreensão de uma realidade podre (representada por frutos estragados) e falta total de sentimento das coisas.
O tríptico, a nosso ver, é a representação máxima da arte. Arte como criação e não como imitação da realidade. Arte enquanto explosão dos sentimentos e denotação dos conflitos existentes na sociedade. Como regra de comportamento que nos leva à esquerda (paraíso) ou à direita (inferno).
É também visto como a consagração do homem em toda sua dimensão. Não religiosa, mas empírica. É o prazer (hedonismo) buscado a todo instante. É a felicidade (epicurismo) representada em toda sua dimensão. É a busca constante pelo carpe diem, ou seja, o apelo para que as pessoas superem medos futuros e se dissociem do passado, passando a viver o presente. É a expulsão total de infernos que nos molestam e de sentimentos represados que nos atormentam para que se possa viver o agora.
O homem deve arrebentar os grilhões que o prendem a etiquetas, preconceitos, repressões, sujeições a comportamentos que não quer ter, mas que o manietam a uma sociedade cheia de idiotices.
Bosch nos ensina a quebrar códigos e a usufruir a vida tal como ela é. Busca dissociar o homem de credos religiosos que o amarra a um passado de sujeição por cânones e crendices de toda ordem. Da religião que veio para sujeitar o homem e descaracterizar nele todos os prazeres que deve desfrutar da vida que deus lhe deu.
Nesse aspecto, o tríptico do “Jardim das delícias terrenas” é um verdadeiro exemplo de romper grilhões e desapegar-se de falsas crenças e de idiotismo normativo.
É, pois, uma obra de libertação.