A Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) aprovou no dia 1º de abril, em decisão unanime do seu Conselho Universitário (Consu), a reserva de vagas para pessoas trans, travestis ou não binárias em cursos de graduação da instituição. A Unicamp se torna a 21º. Instituição pública de ensino superior do Brasil- e a primeira estadual de São Paulo- a adotar políticas afirmativas de reserva de vagas para esta população. O modelo prevê que cursos com até 30 vagas regulares deverão ofertar, no mínimo uma vaga – regular ou adicional, para pessoas trans, travestis ou não binárias. Nos cursos com 30 ou mais vagas deverão ser ofertadas duas vagas. Não sendo adicionais, as vagas serão subtraídas das vagas de ampla concorrência do sistema Enem-Unicamp. A resolução estabelece ainda que metade das vagas serão distribuídas levando em conta os critérios das cotas para pretos, pardos e indígenas (PPI). Segundo defensores desta medida a política de cotas abre portas e representa um avanço significativo frente a violações históricas sofridas por estas populações. Estas medidas devem ser sempre acompanhadas de políticas afirmativas e suas ações devem estar presentes desde a educação básica.
Essa luta pela democratização do acesso ao ensino superior público brasileiro e pela implementação de políticas afirmativas já dura mais de duas décadas. Teve como protagonista o Movimento Negro Brasileiro, em consequência da ausência de pessoas negras nas nossas universidades, seja como alunos, docentes ou trabalhadores técnico-administrativos. O movimento teve sua primeira vitória com a implementação, em 2002, de um programa de cotas raciais para o ingresso na graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf) e da Universidade do Estado da Bahia (Uneb).
O movimento evoluiu e nos anos seguintes assistimos, não sem questionamentos, ações afirmativas em diversas universidades. O processo, contudo, só foi pacificado quando o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, em 2012, por unanimidade, rechaçar a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental,186, proposto pelo partido Democratas (DEM) em 2009, que contestava a legitimidade do regime de cotas raciais adotado pela UnB para o acesso à universidade. Este posicionamento do STF abriu o caminho para que o Projeto de Lei 73/1999, que instituía a reserva de no mínimo 50% de vagas de cada turno e de cada curso das instituições federais de ensino superior para estudantes que tivessem cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas, fosse aprovado na forma de da Lei 12.711, em agosto de 2012. Metade desta metade foi reservada a estudantes de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário mínimo per capta. Daquela metade, uma proporção variável por estado, deveria ser preenchida por autodeclarados pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência.
Se nas instituições federais a Lei garantia estes benefícios, a partir dos vestibulares de 2013, nas Universidades paulistas esta questão só foi regulamentada mais tardiamente. Embora as três universidades paulistas, desde 2003, adotassem programas de ação afirmativas e inclusão social como o PAAIS (Unicamp) e o INCLUSP (Usp) os seus resultados ficaram aquém do esperado. A partir de 2014 a Unesp passou a realizar o Concurso Vestibular por dois sistemas de inscrição: o Sistema Universal – SU e o Sistema de Reserva de Vagas para Educação Básica Pública – SRVEBP. Todos os candidatos concorriam às vagas pelo Sistema Universal, mesmo que inscritos para o SRVEBP. O percentual de adesão aumentou progressivamente ao longo dos anos. Partindo de 15% em 2014,25% em 2025,35% em 2016 e 45% em 2017. A partir de 2017, a UNESP e USP aprovaram resoluções garantindo 50% de suas vagas, por curso e por turno, a estudantes advindos de escolas públicas e deste 50% um percentual de 35% (UNESP) e 37% (USP) reservadas a estudantes autodeclarados pretos, pardos ou indígenas (PPI).
Em novembro de 2023 foi sancionada a Lei 14.723 que introduziu mudanças importantes na Lei 12.711 de 2012. Em âmbito federal no mecanismo de ingresso anterior, o cotista concorria apenas às vagas destinadas às cotas, mesmo que ele tivesse pontuação suficiente na ampla concorrência. Com a nova legislação, primeiramente serão observadas as notas pela ampla concorrência e, posteriormente, as reservas de vagas para cotas. Também foi reduzido o valor definido para o teto da renda familiar dos estudantes que buscam o acesso no ensino superior por meio do perfil econômico de um salário mínimo e meio para um salário mínimo. Outras mudanças foram a inclusão de alunos quilombolas como beneficiários das cotas, nos moldes do que ocorria para pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência (PcDs); o estabelecimento de prioridade para cotistas no recebimento do auxílio estudantil; e a extensão das políticas afirmativas para a pós-graduação.
A resistência ao sistema de cotas ainda persiste, principalmente entre aqueles que não conhecem os estudos e trabalhos sobre o tema. A Unesp foi a primeira das Universidades estaduais de São Paulo a estabelecer um sistema de cotas raciais em 2013. Estudos realizados por seus professores, ao comparar o coeficiente médio de rendimento dos ingressantes na Unesp entre 2014 e 2017, não encontraram diferenças relevantes de rendimento acadêmico entre os estudantes que ingressaram na Unesp pelo sistema universal e aqueles que ingressaram pelo sistema de reserva de vagas.
Segundo dados de 2023 do Censo da Educação Superior, 51% dos alunos cotistas concluíram o curso, enquanto a conclusão entre os não cotistas foi de 41%, Entre quem utiliza o Fies, a conclusão da graduação foi de 49% e de 34% dos que não o utilizam. Já em relação ao Pro Uni, o índice foi de 58% contra 36% nos estudantes que não tem o suporte.
Se estes dados e resultados reforçam nossa crença no modelo de cotas adotado para o Ensino Superior em nosso país, a conquista para pessoas trans na Unicamp aquece o debate e estimula grupos que se sentem alijados ou não contemplados neste momento. Participantes do movimento Levante Indígena da Usp defendem que o sistema seja reavaliado. Alertam que o Anuário estatístico da Usp demonstra que, após a implementação das cotas PPI, o acesso indígena diminuiu, pois passaram a concorrer com pretos e pardos, sem reserva de vagas específicas. Defendem a adoção de um vestibular exclusivo, indígena, como já acontece na Unicamp e na Universidade Federal de São Carlos. Da mesma forma, as pessoas com deficiências (PcDs) sentem-se desassistidas e acreditam que apenas quando tiverem cotas próprias terão visibilidades nos movimentos.
Como vemos, temos razões objetivas para comemorar os avanços conquistados por parcelas significativas da nossa população mais vulnerável e desassistida, mas, o debate vai continuar e há muito ainda por se fazer.