Neste início de 2025 a cultura brasileira perdeu o brilho intelectual do casal Affonso Romano de Sant’Anna e Marina Colasanti, que tiveram forte influência na literatura nacional e partilharam o amor pela vida e os livros durante 52 anos. Ambos nasceram em 1937: ele em Belo Horizonte, ela na colônia italiana da Eritrea (região ao norte do continente africano), viveu parte da infância na Líbia e Itália e emigrou para o Brasil com os pais em 1948, assumindo a nossa nacionalidade. Moravam no Rio de Janeiro: ela faleceu em 28/01, ele no último dia 04. Marina tinha a Doença de Parkinson, enquanto Affonso não resistiu aos últimos 4 anos acamado com Alzheimer.
Marina
Seu primeiro livro- “Eu sozinha” – foi publicado em 1968 e conta a história de vida de uma mulher jovem que caminha só, mora só, viaja só e trabalha só, mesmo tendo ao lado a ilusão de outras proximidades. É um livro que fala da solidão e deu início à sua brilhante carreira literária, com obras de poesia, contos, ensaios, crônicas, romances e literatura infanto-juvenil, que lhe renderam prêmios literários aqui e no exterior. Além disso, ela resgatou sua formação como artista plástica e ilustrou várias de suas obras, tendo também trabalhado como jornalista, tradutora e apresentadora de programados televisivos.
Foram mais de 70 obras, deixando um legado marcante para a cultura nacional e uma forte inspiração para leitores e escritores jovens. Várias delas foram traduzidas para outros idiomas e objeto de pesquisa na área de estudos literários em universidades brasileiras e estrangeiras. “Eu sei, mas não devia” é considerada uma das suas principais obras. Publicada em 1995, traz uma coletânea de crônicas sobre a condição humana e o papel da mulher na sociedade.
Affonso
Escritor, ensaísta, contista, poeta e jornalista, teve uma produção literária extensa e influente com foco no engajamento social, tornando-se um dos nomes mais marcantes da literatura brasileira nos últimos anos. Além disso, teve um papel importante na política cultural do país: como presidente da Fundação Biblioteca Nacional, no período 1990/1996, modernizou a instituição, criou o Sistema Nacional de Bibliotecas e implementou o programa Promoção da Literatura (PROLER), que mobilizou milhares de voluntários em todo o país. Também presidiu o conselho do Centro Regional para o Fomento do Livro na América Latina e no Caribe. Lecionou na UCLA/Los Angeles e ministrou cursos de literatura em universidades da Alemanha, EUA, Dinamarca, Portugal e França, atuou como crítico literário e foi cronista dos jornais O Globo e Jornal do Brasil.
Graduado e doutorado em letras neolatinas pela então Universidade de Minas Gerais (hoje federal), desde jovem participava de movimentos de vanguarda poética no país. Na sua tese de doutorado, em 1969, elaborou uma análise- considerada brilhante- da poética de Carlos Drumond de Andrade sob o título “Drumond, um gauche no tempo”, contextualizando o conceito da palavra gauche ao longo da sua obra literária. De origem francesa, a palavra significa literalmente “esquerdo”, podendo ser usada ainda como tímido, socialmente deslocado. No poema “Sete Faces” de Drumond, o termo é usado como referência a uma vida à margem das normas sociais e convencionais, como alguém que não se encaixa nesses padrões sociais.
Poeta do seu tempo
Em longo depoimento dado em 2013 sobre uma das suas principais obras, o livro de poemas “Que País é este” publicado em 1980 (período da ditadura militar), Affonso abordou o momento nacional dos últimos anos -instabilidade política, escândalos de corrupção- e lançou um convite à reflexão nacional: “Que País será este daqui a 50 anos?”. Antes da doença, ele acompanhou de perto o início e a evolução da Operação Lava Jato indiciando autoridades governamentais, agentes públicos, políticos e empresários pela prática de corrupção generalizada. Acamado com Alzheimer nos últimos 4 anos, certamente ele não compreendeu porque o STF, que aprovara as condenações, confissões, prisões e multas aos corruptos de toda ordem (ex-presidente, agentes públicos e empresários), resolveu apagar tudo numa prática negacionista que remonta ao período nazista: o Holocausto, a pandemia da Covid-19, a ditadura militar e a Lava Jato nunca existiram. Os corruptos foram libertados e anuladas as penalidades e multas. O poeta não acompanhou também a tentativa frustada de golpe militar que pode levar o ex-presidente Bolsonaro à prisão.
Hoje, instável como uma biruta de aeroporto, o executivo faz de conta que governa; o legislativo ocupa espaços na esplanada, assume funções do executivo através de emendas parlamentares suspeitas e negocia aprovação de projetos (nesta semana Lula justificou a nomeação de Gleisi Hoffman como “ uma mulher bonita” para cuidar da articulação política com o Congresso Nacional. Como sempre, um improviso infeliz, machista e depreciativo à nova ministra, que parece não haver entendido nada). Enquanto isso, o STF faz vistas grossas às decisões monocráticas (danosas aos cofres da União) da Corte, e não contém o assalto aos recursos públicos praticado pelo corporativismo do judiciário através da concessão de penduricalhos financeiros, bônus, compras suspeitas e reajustes imorais a juízes e desembargadores país afora.
Caro poeta desse tempo: descontando os 12 anos decorridos do seu convite à reflexão nacional, provavelmente saberemos em menor tempo o que será este País num futuro próximo.
Há uma sensação de insegurança como se vivêssemos num campo de girassóis sob nuvens de pesadelos, pinceladas pelo mutilado e perturbado gênio holandês pós-impressionista.