O grave quadro de fragilidade das instituições não é obra do acaso, mas fruto de reiteradas manobras legislativas. Tais manobras foram referidas em recente relatório da OCDE, que aponta especialmente o Ministério Público, algo preocupante sob o prisma social e do ponto de vista da (in)eficiência crônica no combate à corrupção.
A PEC 37 (do poder de investigação criminal), a PEC da vingança, a nova lei de abuso de autoridade e a PEC da mordaça são alguns dos exemplos de iniciativas visando ao desmantelamento do Ministério Público. Por outro lado, na Câmara, em 2008, tivemos 22 urgências de votação. A prosseguir no ritmo que estamos, ultrapassaremos 400 urgências em 2024, o que revela também outra gravíssima fragilização –da democracia.
A bola da vez pode ser a lei da Ficha Limpa, cujo PLP 192 de 2023 avançou na Câmara e no Senado sem debates, mesmo tendo se originado de um projeto de iniciativa popular com assinaturas colhidas ao longo de 14 anos.
Em vez de fortalecer a democracia e as instituições, estamos no caminho diametralmente oposto, diante da constatação do pornográfico índice de reeleição de 93% dos prefeitos recebedores de emendas PIX nos 100 maiores municípios beneficiários, o que evidencia que o fator desequilibra a competição pelo voto. Isso, mesmo diante de avaliações medíocres por parte dos eleitores, salvo raras exceções como Maceió e Recife.
O Congresso acaba de aprovar “de boiada” a Lei Complementar 210 de 2024, sancionada pelo presidente, que avaliza o “orçamento secreto”, sem observância plena do que decidiu o STF nas ações propostas pela Abraji, PGR e Psol, visando a preservar o sistema clientelista de destinação de verbas públicas, marcado pela falta de critérios, de políticas públicas.
Na contramão dos padrões mundiais em que, dentre 11 países integrantes da OCDE analisados por estudo do Insper, os Congressos discutem prioridades nacionais e fiscalizam, não havendo os níveis de ingerência do Brasil, o ministro Flávio Dino já despachou a ADPF 854, liberando as emendas nos termos da nova LC 210 de 2024…
No Congresso, tem sido comum a parceria entre os mais diversos segmentos políticos, entre Legislativo e Executivo, obstruindo o controle da corrupção, como ocorreu na anistia aos partidos e no esmagamento da lei de improbidade, com diversos congressistas processados votando a favor da aprovação do projeto, sem qualquer constrangimento, para se autobeneficiar.
É neste cenário de democracia e institucionalidade em farrapos que assistimos à ascensão vertiginosa do golpismo dos últimos anos, com dezenas de milhares de pessoas indo às ruas reiteradamente com apoio do ex-presidente para pedir o fechamento do Congresso e do STF, chamando isto de “manifestação”.
Na mesma sintonia, o ataque simultâneo de milhares de pessoas às sedes dos Três Poderes, com grotescos espancamento a dezenas de jornalistas no 8 de Janeiro, o que por um fio não resultou na ruptura do Estado de Direito. Mais recentemente, tivemos a explosão do homem-bomba –o lobo da alcateia golpista agindo em sintonia com ela, com ares terroristas diante do STF.
Semanas antes daquele 8 de Janeiro, estava tudo minuciosamente organizado para os assassinatos do presidente eleito, do vice e de um ministro do STF. Agora, o ex-presidente, convenientemente, por seu advogado vem a público apresentar a tese do “golpe do golpe”, alegando que os militares teriam planejado assumir o poder eles mesmos, excluindo-o.
No nosso sistema processual penal, acusados podem criar as narrativas que bem entenderem sem que isto acarrete qualquer consequência punitiva –o fato é considerado autodefesa.
Um ponto crucial que merece especial atenção vai além disso e diz respeito à concessão da anistia penal. O titular constitucional da ação penal é o Ministério Público. A responsabilidade é emanada de uma importante sequência de atos e será necessário observar toda a floresta, e não apenas uma das árvores isoladamente.
Existem exceções. No caso, está em debate a possível concessão de anistia legal a pessoas envolvidas em atos golpistas, inclusive os generais e o ex-presidente da República, que, por ato político do Congresso, sancionado pelo presidente, poderiam ser beneficiadas pela não incidência dos efeitos da lei em relação a si.
No mínimo, o crime de abolição violenta do Estado de Direito é gravíssimo assim como o crime de associação criminosa (artigo 288 do Código Penal), isso se considerarmos que as ações contra as vidas não chegaram a ser tentadas. Estamos falando da proteção do bem jurídica ordem democrática, que é da maior relevância social, devendo ser protegido com extrema preciosidade pelos impactos nefastos de seus ataques.
Que se tenha muita clareza que temos diante de nós crimes horrendos que atingiram dezenas de milhões de brasileiros e não podemos seguir em frente sem acertar essas contas. É bem diferente do alcance jurídico de um crime de furto cometido em uma estação de trem em que se viola o patrimônio da vítima. A ordem democrática tem um alcance transindividual gigantesco e as ações traumatizaram a nação, sendo o único caminho digno a devida responsabilização dos artífices.
Estamos diante de uma prova de fogo 60 anos depois do início da ditadura vivida de 1964 a 1985, um teste de força do nosso sistema. A anistia aos golpistas transmitiria a amarga e dolorosa mensagem de que o crime compensa, que a impunidade mais uma vez prevaleceu, que não se respeita a Constituição, não se protege a democracia e que o Estado e suas instituições não têm força suficiente para dar a devida resposta aos golpistas.
Ao longo dos últimos anos, diversos acontecimentos sociais e políticos parecem propor, por mais incrível que isso possa parecer, a naturalização da corrupção e a flexibilização dos valores democráticos.
A reação letárgica da sociedade, infelizmente, contribui decisivamente para a sedimentação de um quadro sombrio, de um novo tempo no qual se abdica de valores éticos, da coexistência digna e pacífica em sociedade, na direção de um epílogo que é um grande enigma.
Fonte: Poder360