Mesmo com o incremento dos crimes violentos, muitos deles fomentados pelo tráfico de drogas, parece que alguns ministros do Superior Tribunal de Justiça vivem em um mundo à parte, onde tudo caminha normalmente e as pessoas não são vítimas de infrações das mais diversas ordens, que as colocam em pânico, como sequestros relâmpagos, roubos, latrocínios e muitos outros.
Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça, em decisão monocrática, anulou revista pessoal realizada por guardas civis e absolveu o acusado, mesmo com ele tendo sido encontradas drogas (cocaína e crack). Os guardas civis desconfiaram do acusado que demonstrou nervosismo ao ver a viatura, encontrando-se em local conhecido como ponto de tráfico. A condenação foi mantida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que decidiu ter sido legal a revista pessoal, mas restou anulada pelo DD Ministro por entender que o ato não teve relação com a competência constitucional da guarda civil de proteção dos próprios municipais e nem se inseriu na hipótese de flagrante delito em que qualquer um pode realizar a prisão (Ag em REsp nº 2528108/SP, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. em 15.10.2024).
Além de concluir pela ilicitude do proceder da guarda municipal pela ausência de competência constitucional, entendeu o Ministro que: “A simples leitura dos autos deixa claro que, a princípio, havia mera desconfiança de que o acusado estivesse na posse de algo ilícito; só depois da revista pessoal é que a suspeita se confirmou e se configurou a situação flagrancial que ensejou a prisão”.
Ele também acrescentou que: “Ademais, a busca pessoal foi amparada na mera menção genérica ao nervosismo do acusado, o que também está em desacordo com a jurisprudência consolidada desta Corte“.
A maioria da população sabe, notadamente quem vive nas cidades do interior dos Estados, que boa parte dos flagrantes e o patrulhamento preventivo são realizados pelas Guardas Municipais. Em muitas cidades não há efetivo suficiente de policiais militares para o exercício dessas funções, dever este constitucionalmente imposto ao Estado membro.
Sem o emprego da Guarda Civil para realizar patrulhamento preventivo deixaria os cidadãos desprotegidos e, com isso, o número de crimes, notadamente patrimoniais e o tráfico de drogas, aumentaria exponencialmente.
O artigo 144 da Constituição Federal trata dos órgãos que compõem o sistema de segurança pública e seu § 8º dispõe especificamente sobre as guardas municipais, nos seguintes termos:
“Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
(…)
§ 8º Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei.”
Note-se que as Guardas Municipais compõem o sistema de segurança pública e sua organização se realizará nos termos da Lei.
A Lei que regula as guardas municipais é a de nº 13.022/2014, que, nos termos do inciso III, do seu artigo 3º, diz ser princípio mínimo de atuação do Órgão, dentre outros, o patrulhamento preventivo.
Com efeito, não resta a menor dúvida de que as Guardas Municipais, mesmo que supletivamente, podem exercer funções para preservação da segurança pública e realizar patrulhamento preventivo, malgrado ter como função principal a proteção do patrimônio municipal.
E, neste sentido, decidiu o Supremo Tribunal Federal, declarando inconstitucional todas as interpretações judiciais que excluam as Guardas Municipais, devidamente criadas e instituídas, como integrantes do Sistema de Segurança Pública (STF: ADPF 995/DF, Rel. Min. Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, m.v., j. em 28.08.2023).
Destarte, claro está que as Guardas Municipais, devidamente regularizadas, compõe o sistema de segurança pública e, como tal, podem atuar, não só na proteção do patrimônio público municipal, mas na segurança de toda coletividade da cidade sede, não se justificando, na atualidade, em que a criminalidade, notadamente a organizada, fortalece-se, a atuação separada e estanque de cada um dos órgãos de segurança pública, inclusive as guardas municipais.
Mesmo que se entenda de forma diversa, o Código de Processo Penal, no seu artigo 301, diz que: “Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito”.
Este, aliás, sempre foi o entendimento pacífico do Superior Tribunal de Justiça, conforme julgado abaixo:
“É assente nesta Corte Superior de Justiça a orientação de que os integrantes da guarda municipal não desempenham a função de policiamento ostensivo; todavia, em situações de flagrante delito, como restou evidenciado no caso dos autos, a atuação dos agentes municipais está respaldada no comando legal do art. 301 do Código de Processo Penal.” (…) (HC 549.805/SP, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, julgado em 11/02/2020, DJe 21/02/2020)”.
E, no caso em comento, o acusado trazia consigo drogas, com finalidade de tráfico, modalidade de conduta em que o crime é permanente, podendo ser preso em flagrante delito enquanto mantida a permanência. E a única forma de materializar o flagrante é com a revista pessoal, estando presentes as fundadas suspeitas, como concluído pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, cuja decisão foi anulada pelo STJ em decisão monocrática.
Como nada está tão ruim que não possa piorar, além de flexibilizar as normas penais para o tráfico de drogas, tratando-o, em inúmeros casos, como crime de pequeno potencial ofensivo e, por outro lado, endurecendo sensivelmente as normas processuais, como nos casos de revista pessoal e busca domiciliar, o que já pude abordar em vários artigos, agora, para facilitar ainda mais a vida dos traficantes e dos ladrões em geral, e piorar a da sociedade ordeira, o STJ resolveu jogar duro com as guardas municipais.
A 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça já havia decidido que só em situações excepcionais a guarda civil pode realizar a abordagem de pessoas e a busca pessoal, quando a ação se mostrar diretamente relacionada à finalidade da corporação, qual seja, a defesa do patrimônio público municipal. Do contrário, a prova será considerada ilícita e a solução será a absolvição, se não houver outras provas independentes e lícitas (HC nº 830.530/SP, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, 3ª Seção, v.u., j. em 27.09.2023), o que quase nunca haverá, anotando que foi interposto recurso extraordinário pelo Ministério Público do Estado de São Paulo contra essa decisão, já admitido e aguardando julgamento pela Excelsa Corte.
Vejam bem. Às polícias em geral foi praticamente vedada a revista pessoal e o ingresso no domicílio sem ordem judicial, relegando o ato para hipóteses absolutamente excepcionais, equiparadas à visualização do crime, isto é, do flagrante delito, como já me manifestei em posts e artigos publicados na Rede.
A cada dia que passa o Brasil está mais perto de se tornar a nova Colômbia, Bolívia e Peru em que o narcotráfico domina a vida da nação, o que já ocorre nas comunidades cariocas por motivos que cansei de falar e escrever.
O cerco foi fechado. Ninguém mais pode prender traficantes, assaltantes, portadores de armas de fogo e outros marginais, exceto se estiverem em flagrante delito ou em situação muito próxima a ele. Cabe às polícias apenas patrulhar, mas não abordar aquele que demonstra excessivo nervosismo ou foge ao ver a viatura, corre para dentro de casa após ser visualizado em transação que tudo indica ser ilícita, que dá a volta ao perceber uma blitz e em outras situações que sempre foram consideradas fundadas suspeitas para a abordagem e revista.
Entrar na residência do suspeito, praticamente só com ordem judicial, que só será obtida horas ou mesmo dias após, se ainda assim for deferida, enquanto a prova é literalmente jogada no esgoto e os marginais terem se evadido.
Os guardas civis, então, só deverão patrulhar praças, escolas municipais, parques e outros próprios municipais e só intervir quando o patrimônio municipal sofrer risco de ser danificado de algum modo, deixando para lá o combate ao tráfico de drogas, aos furtos, roubos e outros crimes, mesmo que não haja efetivo da Polícia Militar suficiente e que a população tenha seus bens jurídicos, inclusive a vida, colocados em risco de dano, por não poder realizar patrulhamento preventivo, mesmo que a lei assim determine e possam prender como qualquer do povo, relegando a atuação de segurança pública só para casos excepcionais e em defesa do patrimônio municipal, sob pena de a prova produzida ser considerada ilícita e o bandido solto.
Este é o atual posicionamento do Superior Tribunal de Justiça.
O que me deixa um pouco mais tranquilo, mas só um pouco, é que ainda temos Magistrados em diversos Tribunais, e posso falar do Tribunal de Justiça de São Paulo, que julgam de acordo com seu livre convencimento motivado e não se deixam abalar por decisões desse tipo, que seriam estranhas até mesmo em países como Suécia, Dinamarca, Noruega, Alemanha e Canadá, parecendo de outra galáxia, mas não em um país como o Brasil em que há uma das maiores criminalidades do mundo, sobretudo tráfico de drogas e outros crimes a ele ligados, como homicídios, organização criminosa, assaltos, lavagem de dinheiro, corrupção, dentre outros.
Para finalizar, anoto que, recentemente, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal cassou decisão do Superior Tribunal de Justiça para declarar a licitude da revista pessoal e prisão em flagrante delito realizadas pela guarda municipal por integrar o sistema de segurança pública (STF: Ag. Reg. no RExt. 1468558/SP, 1ª Turma, Rel. Min. Alexandre de Moraes, m.v., j. em 1º/10/2024).
Como foi admitido recurso extraordinário contra acórdão da 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça que decidiu ser ilícita a atuação da guarda municipal na revista pessoal e prisão em situação que não se enquadre na defesa do patrimônio público municipal, logo haverá a pacificação do tema, que esperamos seja na defesa da sociedade, mormente pelo incremento da criminalidade organizada por quase todo Brasil, que tem o tráfico de drogas como principal combustível, cujo combate somente pode ser feito por todo sistema de segurança pública, que é composto não apenas pelas polícias em geral, mas também pelas guardas municipais presentes em boa parte das cidades pelo Brasil afora.
Autor: César Dario Mariano da Silva – Procurador de Justiça – MPSP. Mestre em Direito das Relações Sociais – PUC/SP. Especialista em Direito Penal – ESMP/SP. Professor e palestrante. Autor de diversas obras jurídicas, dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal, Manual de Direito Penal, Lei de Drogas Comentada, Estatuto do Desarmamento, Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade, publicados pela Editora Juruá.