No último dia 15 de março, chegaram ao conhecimento público os depoimentos do tenente-brigadeiro Carlos Almeida Baptista Júnior e do general Marco Antônio Freire Gomes, respectivamente ex-comandante da Aeronáutica e ex-chefe do Exército durante o governo Jair Bolsonaro.
Tais depoimentos relataram uma reunião ocorrida no dia 14 de dezembro de 2022, no gabinete presidencial, na qual teria sido apresentado um rascunho de decreto de Estado de Defesa e de Estado de Sítio para discussão.
Por conta da evidente ilegalidade do possível e futuro decreto, que flertava com a interrupção da posse do novo presidente eleito, o general Freire Gomes teria ameaçado prender o ex-presidente Jair Bolsonaro, caso ele levasse adiante o intento de transformar o rascunho em decreto, o que não chegou a ser iniciado. Segundo o artigo 301 do CPP:
“Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito.”
No caso do general, conforme adiante se verá, sua condição legal impunha-lhe o dever de efetuar a prisão em flagrante, caso tivesse presenciado o início de execução de algum crime. É o chamado flagrante compulsório. O general não pode ser equiparado a “qualquer do povo”, pois ele é o comandante do Exército brasileiro e tem a obrigação de salvaguardar o Estado de Direito.
Definições e espécies de flagrante
O termo flagrante provém do latim flagrare, que significa queimar, arder. É o crime que ainda queima, isto é, que está sendo cometido ou acabou de ser.
Na conhecida lição de Hélio Tornaghi, “flagrante é, portanto, o que está a queimar, e em sentido figurado, o que está a acontecer” [1].
José Frederico Marques define o flagrante como “o crime cuja prática é surpreendida por alguém no próprio instante em que o delinquente executa a ação ilícita” [2].
Júlio Fabbrini Mirabete anota que “flagrante é o ilícito patente, irrecusável, insofismável, que permite a prisão do seu autor, sem mandado, por ser considerado a certeza visual do crime” [3].
“É, portanto, medida restritiva da liberdade, de natureza cautelar e processual, consistente na prisão, independente de ordem escrita do juiz competente, de quem é surpreendido cometendo, ou logo após ter cometido, um crime.” [4]
Existem três espécies de flagrante:
(a) próprio, quando o agente é surpreendido cometendo a infração penal ou quando acaba de cometê-la (CPP, artigo 302, I e II);
(b) impróprio, quando o agente é perseguido, logo após cometer o ilícito, em situação que o faça presumir ter sido o autor da infração (CPP, artigo 302, III);
(c) presumido, quando o sujeito é preso logo após cometer a infração, mesmo que não tenha havido perseguição, com instrumentos ou armas que o façam presumir ter sido ele o autor da infração (CPP, artigo 302, IV).
Minuta do golpe, ação típica e ato preparatório
Conclui-se, desta forma, que a prisão em flagrante tem como pressuposto lógico a existência de um crime que está ocorrendo no mesmo momento em que é efetuada ou instantes antes da prisão.
O crime, em tese, seria o de tentar a decretação de um estado de sítio ou defesa fora das hipóteses constitucionais, em desrespeito ao resultado democrático das urnas, de modo a impedir a posse do presidente eleito no pleito presidencial de 2022.
Para a tipificação dos crimes previstos nos artigos 359-L (abolição violenta do Estado Democrático de Direito) e 359-M (golpe de Estado), é imprescindível a configuração da elementar típica da violência ou grave ameaça, ou seja, pressupõe uma intervenção direta com uso de estrutura operacional armada capaz de efetivar a subversão da ordem democrática.

Spacca
Referido rascunho não foi aprovado, nem submetido ao Congresso, nem tampouco transformado em decreto autorizador do uso de força para a subversão do Estado Democrático de Direito.
Tivesse havido início de execução, o crime já estaria consumado, por se tratar do chamado delito de atentado, no qual a mera tentativa já é a consumação. Esta espécie de delito não admite tentativa. Ou a ação típica foi realizada integralmente e existe crime consumado ou não passou de ato preparatório, irrelevante para o Direito Penal.
Freire Gomes falou de maneira hipotética
O fato, porém, é que, se tivesse mesmo havido início de execução, os altos comandantes das Forças Armadas que estavam presentes, deveriam ter, naquele mesmo momento em que presenciavam um crime, procedido à prisão em flagrante de seus autores.
Não era caso de flagrante facultativo, mas obrigatório, ou seja, estaríamos diante da hipótese da segunda parte do artigo 301 do CPP, pois, o termo “autoridade policial ou seus agentes deverão efetuar a prisão em flagrante” aplica-se por analogia aos comandantes das Forças Armadas que estavam em pleno exercício de seus poderes e tinham o dever de preservação da ordem democrática.
É o que se depreende do disposto no artigo 142 da CF:
“As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina… e destinam-se à defesa da Pátria, à garantida dos poderes constitucionais e da lei e da ordem.”
Ao contrário do que se poderia pensar, as Forças Armadas não constituem poder moderador, figura que só existiu na Constituição Imperial de 25 de março de 1824 e era exercido pelo imperador. É exatamente o oposto.
Cabe às Forças Armadas, por meio de seus comandantes supremos reprimir qualquer tentativa de golpe ou insurreição armada. Assim, se o general Freire Gomes e o tenente-brigadeiro Baptista Júnior tivessem presenciado o início de uma ação armada para obstruir a posse do eleito, teriam o dever legal de agir imediatamente e impedir tal ação.
A hipótese aventada nos depoimentos de ambos dá a nítida impressão de que ainda não havia um crime em início de execução que pudesse autorizar uma prisão em flagrante. O general Freire Gomes fala sempre de maneira hipotética, empregando o tempo verbal do futuro do pretérito: “Eu teria que prender o presidente”.
Daí se deduz claramente que nenhum ato concreto e efetivo havia sido iniciado. Tivesse ocorrido início de execução de crime, todos os comandantes militares presentes seriam partícipes do crime por omissão. É o chamado crime comissivo por omissão.
De acordo com o artigo 13, § 2º, do CP, “a omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado”. Isto significa que, se o sujeito presencia a prática de um crime e tem o dever jurídico de impedi-lo, caso se omita e permita a ocorrência do ilícito penal, será considerado também seu partícipe, respondendo do mesmo modo que os autores que executaram a empreitada delituosa. É a chamada participação por omissão.
O agente, por meio de sua omissão, pratica uma verdadeira ação, daí o nome de crime comissivo por omissão. É a omissão sendo equiparada à ação. É o caso do bombeiro que não socorre a vítima se afogando, quando lhe era possível fazê-lo, ou do policial que não impede o espancamento da vítima. Ambos respondem pelo homicídio culposo (se foram negligentes) ou doloso (se aceitaram o risco do resultado morte ocorrer).

Existem três hipóteses de dever jurídico, e a primeira delas é a do dever legal. Responde pelo crime todo aquele que, tendo por lei o dever de impedi-lo, não o faz, omitindo-se (CP, artigo 13, § 2º, a). Se houvesse um crime, os comandantes militares não poderiam ter se omitido e deveriam ser também responsabilizados criminalmente junto com os demais coautores e partícipes.
Não podem, assim, ser tratados simplesmente como testemunhas, surgindo a figura da cumplicidade, atualmente denominada participação omissiva.
Caminho do crime e a fase de preparação
Ao que tudo indica, porém, não chegou a existir crime, de acordo com o chamado iter criminis, ou seja, o caminho do crime. Quatro são suas etapas: cogitação, preparação, execução e consumação.
“Na cogitação, o agente apenas mentaliza, idealiza, prevê, antevê, planeja, deseja, representa mentalmente a prática do crime. Nessa fase, o crime é impunível, pois cada um pode pensar o que bem quiser. Pensiero non paga gabella, cogitationis poena nemo patitur. Enquanto encarcerada nas profundezas da mente humana, a conduta é um nada, totalmente irrelevante para o Direito Penal… Na preparação, ainda não se iniciou a agressão ao bem jurídico. O agente não começou a realizar o verbo constante da definição legal (o núcleo do tipo), logo o crime ainda não pode ser punido. No ensinamento de Maurach, ato preparatório é aquela forma de atuar que cria as condições prévias adequadas para a realização de um delito planejado. Por um lado, deve ir mais além do simples projeto interno (mínimo) sem que deva, por outro, iniciar a imediata realização tipicamente relevante da vontade delitiva (máximo). É somente na fase da execução que o bem jurídico começa a ser atacado. Nessa fase, o agente inicia a realização do núcleo do tipo e o crime já se torna punível. O melhor critério para definir o fim da preparação e o início da execução é o que entende que a execução se inicia com a prática do primeiro ato idôneo e inequívoco para a consumação do delito. Enquanto os atos realizados não forem aptos à consumação ou quando ainda não estiverem inequivocamente vinculados a ela, o crime permanece na sua fase de preparação.” [5]
Nessa mesma linha, José Frederico Marques, para quem “a atividade executiva é típica e, portanto, o princípio da execução tem de ser compreendido como início de uma atividade típica. Assim, o ato executivo é aquele que realiza uma parte da ação típica” [6].
Disto não destoa a melhor doutrina estrangeira. Santiago Mir Puig em precisa lição assevera que: “La consecuencia es que la resolución de delinquir no es punible se no llega a determinar um comportamento externo. No bastaria que el designio criminal trascendiese em el sentido de que fuera coonocida por otras personas. Es preciso que el sujeto llegue a realizar la conducta externa que hubiera deseado llevar a cabo” [7].
Um nada jurídico
Por tudo quanto revelado até o momento, o que efetivamente ocorreu foi uma reunião para discutir a possível transformação de um rascunho em um decreto inconstitucional. Tal discussão, embora reveladora do desejo de interferir ilicitamente no resultado da eleição, ou seja, intenção de praticar crime, carece de densidade estrutural mínima para configurar início da realização das elementares típicas aventadas pelos órgãos de persecução.
Não basta querer, não basta querer inequivocamente. A intenção é impunível em nosso sistema normativo. É imprescindível sair do planejamento e iniciar a realização do crime.
O maior penalista brasileiro de todos os tempos e ex-ministro do STF Nelson Hungria nos dá a definitiva lição: “O critério da inequivocidade, por si só, é precaríssimo: faz de um projeto uma realidade, de uma sombra, um corpo sólido. Revelar a vontade de cometer um crime, ainda que por atos inequívocos, mas sem que se apresente uma situação de hostilidade imediata ou direta contra o bem jurídico penalmente protegido, será uma tentativa conjectural ou hipotética, jamais uma tentativa real ou que ponha em sério e efetivo perigo a indenidade desse bem” [8].
A discussão sobre o rascunho de um decreto é um nada jurídico, não ingressa na fase executória dos crimes tipificados nos artigos 359-L e M, do CP. Na abolição violenta do Estado Democrático de Direito, o primeiro ato idôneo e inequívoco à sua consumação seria o início da ação violenta que tentasse abolir o Estado Democrático de Direito.
No caso do artigo 359-M, delito de golpe de Estado, o início de execução se dá com a prática do primeiro ato com efetiva capacidade para ao menos tentar impedir a posse do governo legitimamente constituído pelas eleições presidenciais de 2022.
Sob o ponto de vista da ciência jurídica, os atos de discussão de 14 de dezembro, embora moralmente reprováveis, não saíram da fase de preparação, ficando distantes do início de execução. Não chegou, portanto, sequer a haver tentativa de crime, que ocorreria com a publicação do decreto, que não chegou a ser feito.
O devido processo legal é o único meio democrático para defender a democracia, devendo o Estado, enquanto titular exclusivo do poder-dever de punir, observar todas as etapas delineadas pelo Processo Penal e pelo Direito Penal na satisfação de seu jus puniendi.
[1] Curso de Processo Penal, 7ª ed. Saraiva, 1990, v. 2, p. 48.
[2] Elementos de direito processual penal, 2ª e. Rio de Janeiro, Forense, v. 4, p. 64.
[3] Código de Processo Penal Interpretado, 5ª ed. São Paulo, Atlas, p. 363.
[4] CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 30ª ed. São Paulo: Saraiva, p 187.
[5] CAPEZ, Fernando. Direito Penal – Parte Geral. 28ª ed. São Paulo: Saraiva, p. 216.
[6] Tratado de Direito Penal. 1ª ed, atualizado por Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, Guilherme de Souza Nucci e Sérgio Eduardo Mendonça de Alvarenga. Campinas: Bookseller 1997, v. 2, p. 372.
[7] Derecho Penal – Parte General. 6ª ed. Barcelona: Editorial Reppertor, p. 205.
[8] Comentários ao Código Penal. 4ª ed. Rio: Forense. Vol. 1, tomo 2, p. 80.