ão tantos os absurdos que vemos praticamente todos os dias cometidos por agentes públicos de todos os níveis, que aquele que não possui formação jurídica indaga se existe alguma lei que os puna.
Existe sim, a Lei nº 13.869, de 5 de setembro de 2019, que cuida dos crimes de abuso de autoridade, que, depois de muita polêmica, entrou em vigor e, como não podia deixar de ser, em nosso Brasil.
Evidente que sempre há os bons e os maus profissionais como em qualquer profissão. Infelizmente, a natureza humana é imperfeita e há aqueles em que o poder sobe à cabeça ou mesmo que pretenda, de algum modo, abusando do poder que lhe foi outorgado, obter algum tipo de vantagem indevida ou deliberadamente prejudicar a outrem pelos mais variados motivos. Nestes casos, indubitavelmente a lei deve ser aplicada e o funcionário público, independentemente da importância de seu cargo, punido como toda e qualquer pessoa.
Os cristalinos abusos ocorridos em todas as esferas públicas sem a devida punição fazem com que, inclusive os profissionais do direito, questionem se ela está mesmo em vigor.
Uma questão que pode implicar sua pouca aplicação é a exigência para a adequação típica do elemento subjetivo próprio dos tipos penais definidos nesta lei, isto é, a presença do dolo, que podemos chamar de específico, sem o qual não haverá o delito de abuso de autoridade, malgrado possa ocorrer outra espécie de infração, seja na esfera penal, na civil ou na administrativa.
A fim de se interpretar adequadamente os dispositivos da Lei nº 13.869/2019, algumas premissas básicas devem ser traçadas.
Genericamente, a lei tutela o correto funcionamento da administração pública e do sistema judiciário, aí incluindo notadamente o da persecução penal, composto por membros do Judiciário, do Ministério Público, das Polícias em geral e alguns órgãos que podem lhes prestar apoio, como as Guardas Civis, Receita Federal, dentre outros.
O espírito da lei é que todo agente público desempenhe suas funções dentro da estrita legalidade, não excedendo os poderes que lhe são outorgados pela Constituição Federal e legislação infraconstitucional.
No entanto, a apresentação do projeto e a publicação da lei deram a impressão de retaliação à ação da Lava-jato e para impedir a atuação dos órgãos da persecução penal em outras operações similares, difundindo o receio de que uma ação mais enfática e enérgica ensejasse representações e até mesmo ações penais contra os agentes envolvidos nessas operações.
Em nenhum momento as normas penais constantes na novel legislação podem servir de escudo para criminosos de todas as ordens, inclusive do alto escalão dos Poderes da República, intimidando ou até mesmo coibindo o livre exercício dos órgãos da persecução penal. Do contrário, haveria indevida ingerência de um Poder da República em outro, violando o princípio da separação dos poderes, ensejando a inconstitucionalidade da norma penal.
É claro que existe o sistema de freios e contrapesos de modo que um Poder seja fiscalizado pelo outro. Mas isso não pode implicar óbice para que o Poder funcione adequadamente e cumpra seu papel constitucional.
Por outro lado, a novel legislação deve balizar o comportamento de todo agente público, notadamente daqueles que exercem parcela do poder estatal, denominados agentes políticos, estando nele englobados os membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, do mais novo até o mais antigo e de todas as instâncias.
Todas as normas penais incriminadoras previstas na Lei de Abuso de Autoridade, dentro do espírito de sua criação, exigem um elemento subjetivo do tipo específico (dolo específico), que é a vontade livre e consciente de abusar da autoridade que está investido, consubstanciado na finalidade específica de prejudicar outrem ou de beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal. Além do mais, não haverá abuso de autoridade na interpretação divergente de normas ou na avaliação de fatos e provas, como expressamente previsto no artigo 1º, §§ 1º e 2º, que trazem o espírito da lei.
Desta norma extrai-se que todos os tipos penais são dolosos e não admitem o dolo eventual e muito menos a culpa. Ou seja, há necessidade de que o agente tenha a vontade deliberada de abusar da autoridade, não bastando a mera tipicidade formal, mas a análise concreta dos fatos, não se esquecendo, ainda, de que a tipicidade material também sempre deverá se fazer presente.
Todos os crimes se processam mediante ação penal pública incondicionada, ou seja, o pontapé inicial é do Ministério Público, que possui a titularidade exclusiva da ação penal pública, nos termos do artigo 129, inciso I, da Constituição Federal (art. 3º, “caput”). Admitir-se-á ação penal subsidiária da pública nos mesmos moldes do previsto no Código de Processo Penal, quando não houver o oferecimento de denúncia, promoção de arquivamento ou requisição de diligências no prazo legal, ou seja, no caso de inércia do Ministério Público, nada mudando em relação ao sistema previsto no Código de Processo Penal (art. 3º §§ 1º e 2º).
Lembro, ainda, que, como titular exclusivo da ação penal pública, a decisão pela propositura, ou não, da ação penal, sempre será do Ministério Público, não podendo ser obrigado a promovê-la quando entender que não é o caso, por nenhum outro órgão, nem mesmo pelo CNJ ou CNMP, tampouco pelo STF ou outro Tribunal.
Por isso, nem tudo é abuso de autoridade e os fatos deverão sempre ser analisados concretamente para verificar se houve o regular exercício das funções ou se o agente público efetivamente extrapolou os limites legais de modo que sua conduta se adeque perfeitamente a um dos tipos penais existentes na novel legislação, presente, ainda, o elemento subjetivo do tipo específico indispensável para a ocorrência do delito.
Em contrapartida, presentes os elementos indispensáveis para a caracterização do delito, a lei penal, que é genérica e impessoal, deve ser aplicada ao agente público que abusou de suas funções, pouco importando quem seja e o grau de importância do cargo ocupado, lembrando que quanto mais importantes as funções exercidas maior deve ser o comprometimento com o bem-estar da população e observância das normas legais.
Essa análise da presença do elemento subjetivo próprio dos crimes de abuso de autoridade nem sempre é fácil de ser verificada e constatada. Contudo, não são raras situações que, de plano, demonstram que realmente o agente público abusou de sua autoridade com o claro propósito de se beneficiar ou a terceiro, ou, ainda, para causar indevidamente dano a um desafeto pessoal ou político. E isso ocorre principalmente quando o agente público conhece perfeitamente o sistema normativo e nunca poderia alegar o desconhecimento de uma norma penal ou orientação jurisprudencial pacífica, não lhe aproveitando a desculpa de que estava apenas interpretando sistematicamente uma norma qualquer, principalmente de natureza penal ou processual penal, o que pode levar à impunidade, o que se tem visto não raras vezes.
A título de exemplos, podem ensejar abuso de autoridade prisões arbitrárias, sem fundamentação concreta, emprego indevido de provas ilícitas, uso abusivo da lei para perseguir desafetos (lawfare), manutenção de homem e mulher na mesma cela ou, ainda, menor de idade e pessoa adulta, negativa de acesso aos autos de investigação ou processo pelo advogado do suspeito, indiciado ou acusado, dentre outras situações abusivas tipificadas na lei em comento.
Se, por um lado, a lei de abuso de autoridade não pode ser empregada para inibir o regular cumprimento das funções dos órgãos da persecução penal e de outros agentes públicos que por ela possam ser alcançados, de outro, suas regras podem e devem ser utilizadas para coibir e punir atos que extrapolem o limite existente entre o regular exercício de uma função pública e a prática de crime, seja quem for o agente público infrator.