Na atualidade em que o direito fundamental de livremente se expressar está tão em baixa, algumas observações merecem ser feitas.
Não é infração penal imaginar, pensar ou combinar alguma coisa, mesmo que constitua crime, se não houver o início da execução de um delito (art. 31 do CP). Também não é crime preparar a realização do ilícito penal sem que haja o início de sua execução. Só haverá a tentativa se o sujeito iniciar a execução do crime, que não se consuma por circunstâncias alheias à sua vontade (art. 14, II, do CP).
A exceção é quando a lei expressamente punir os atos preparatórios, como ocorre com os crimes de associação e organização criminosa (art. 288 do CP e art. 2º da Lei 12.850/2013). No entanto, mesmo para estes delitos, há dois requisitos essenciais: a estabilidade e a permanência do grupo, isto é, que a reunião não seja para a prática de crimes momentâneos e determinados, mas para número indeterminado de delitos, e que os integrantes sejam os mesmos ou ao menos a maioria deles (acerca do tema vide: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/o-que-e-uma-organizacao-criminosa/1742539913 ).
Por outro lado, meros pensamentos não são puníveis no âmbito penal, constituindo a primeira fase do “iter criminis” (caminho do crime), que são quatro: cogitação, preparação, execução e consumação.
Se não tomarmos cuidado, daqui a pouco não se poderá nem mesmo discutir questões políticas em meras conversas de bar, em grupos de redes sociais ou de mensagerias privadas, que serão tidas como atos antidemocráticos, que, nos dois tipos penais específicos previstos no Código Penal, acrescentados pela Lei 14197/2021, pressupõem violência contra a pessoa ou grave ameaça, e que a conduta efetivamente tenha o potencial de colocar em risco o regime representativo e democrático, a Federação ou o Estado Democrático de Direito (arts. 359-L e 359-M – sobre o tema vide: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/afinal-o-que-sao-os-tais-crimes-contra-o-estado-democratico-tao-citados-e-aplicados-na-atualidade/1739131140 ).
Do mesmo modo, meras bravatas em ambiente privado, como “o fulano de tal merece um tiro na cabeça”; “só matando mesmo” e outras conversas idiotas análogas em que as pessoas nunca executariam o ato e falam simplesmente por falar, muitas vezes por desabafo, raiva, embriaguez ou para demonstrar total descontamento com algo ou alguém, são indiferentes penais por não haver sequer cogitação ou atos preparatórios, mas meros pensamentos desprovidos de qualquer lesão a bem jurídico.
Destarte, mesmo que alguém planeje a prática de um crime específico e pratique atos preparatórios, com ou sem parceiros, só haverá a punição se houver o início da execução dos elementos definidores do tipo penal. Assim, no crime de roubo, v.g., mesmo que os assaltantes planejem a execução do crime, adquiram equipamentos e se desloquem ao destino, se não ocorrer o início dos atos executórios do delito, com o ingresso na agência e ao menos o anúncio do assalto, com o emprego de grave ameaça ou violência contra pessoa, a conduta terá ficado nos atos preparatórios e não haverá crime.
Não se pune, portanto, o ajuste, a instigação, o induzimento e o auxílio, salvo disposição expressa em contrário, se não houver o início da execução do crime pelo autor (art. 31 do CP); do mesmo modo que, para a ocorrência da tentativa, é exigido o início da execução do crime (art. 14, II, do CP).
E quando se inicia a execução de um delito?
Há diversas correntes e a que prepondera é a que adota o critério objetivo ou formal. Para esse critério, somente haverá o princípio da execução do crime quando houver o início de uma conduta descrita no verbo do tipo penal. É um critério que parte de um enfoque objetivo ligado ao tipo, ou seja, o sujeito realiza parte do tipo penal para que possa haver o início da execução do delito. Esse critério é o adotado pelo nosso Código Penal, uma vez que somente poderá ocorrer tentativa quando houver atos idôneos que principiem a consumação de um delito previsto em nosso ordenamento jurídico. Assim, v.g., para haver o início da execução do crime de furto, o sujeito deverá começar a subtrair o bem.
Contudo, nada obstante esse critério tenha sido o adotado pelo Código Penal, deve ser complementado. É que em algumas situações há atos que não podem ser desvinculados da prática da conduta típica, embora não haja o início da execução do verbo do tipo. Tomemos por exemplo a situação do indivíduo que ingressa em uma residência para o fim de subtrair bens e é surpreendido pela polícia. Poderá ser-lhe imputada tentativa de furto se ele ainda não iniciou a subtração? Como, no caso, a invasão da residência não pode ser desvinculada do furto, houve o início da execução do crime patrimonial (furto) e ocorreu a tentativa punível.
Saliento que, mesmo iniciada a execução de um delito, a lei ainda dá uma oportunidade para que o agente se arrependa e desista de consumá-lo. Falo da desistência voluntária, instituto previsto no artigo 15 do Código Penal. Cuida-se de causa de exclusão da adequação típica, uma vez que a interrupção voluntária dos atos desfigura a tipicidade da tentativa em relação ao intuito inicialmente concebido. Assim, o agente será responsabilizado apenas pelos atos já praticados.
Dar-se-á a desistência voluntária quando o agente, já tendo iniciado a execução do delito, desiste por sua própria vontade de continuar com a mesma e consumar o delito. Para que haja esse instituto, é preciso que os atos executórios sejam iniciados e o agente voluntariamente os interrompa.
Não se faz necessário que a desistência seja espontânea, basta que seja voluntária. Desistência espontânea é aquela que a ideia de desistir parte do próprio agente; voluntária é a desistência sem coação física ou moral, mesmo que a ideia de desistir parta de outra pessoa ou mesmo de pedido da própria vítima.
Assim, p. ex., se o agente, querendo matar a vítima, atinge-a com o primeiro disparo e, vendo que ela não está mortalmente ferida, deixa de alvejá-la outras vezes, não responderá por tentativa de homicídio, mas pelos atos já praticados (lesões corporais), uma vez que ele podia continuar com a execução e não o fez. Igualmente, aquele que adentra a uma residência para subtrair o televisor, mas desiste voluntariamente de prosseguir com o furto, somente responderá pela invasão de domicílio.
No caso de desistir voluntariamente de consumar o delito e nada tiver ocorrido, isto é, ausente qualquer resultado naturalístico ou jurídico, não responderá por nenhum delito por falta de previsão legal.
Evidente que se o agente desistiu de continuar a execução por circunstâncias alheias à sua vontade, como a chegada da polícia ou por ter sido visto por uma testemunha, cuida-se de crime tentado, anotando que há crimes que não admitem a tentativa, como os unissubsistentes (que se consumam com apenas um ato) e os crimes de atentado (a tentativa já leva à consumação do crime).
Portanto, a diferença entre a desistência voluntária e a tentativa pode ser resumida nos seguintes termos: na desistência voluntária o agente pode continuar com o crime, mas não quer; na tentativa, ele quer continuar com o crime, mas não pode.
Por fim, ocorrerá a consumação quando o fato concreto praticado pelo agente se adequar perfeitamente a uma norma penal incriminadora (art. 14, I, do CP). É a última fase do processo delitivo. O agente imaginou o crime; preparou-o; executou-o e houve a consumação. Exemplo: o agente imagina o delito de homicídio, adquire a arma, aponta-a para o desafeto, aciona o gatilho e atinge o alvo, matando a vítima.
Com efeito, malgrado se idealize, comente e até mesmo planeje um golpe de estado ou a abolição do estado democrático, v.g., se a conduta ficar apenas nos atos preparatórios, não havendo o início de sua execução, e só a cogitação e a preparação, não haverá este delito e nem outro qualquer, exceto se os atos preparatórios forem crime por si mesmos, como quando se adquire armas ou explosivos de forma ilegal, ou quando se constituiu uma organização ou associação criminosa, que, como já visto, exigem, além de outros elementos específicos, que a reunião seja para a prática de indeterminado número de crimes e que seus integrantes sejam os mesmos ou ao menos a maioria deles (estabilidade e permanência).
E, por incrível que pareça, aqui mesmo no Brasil atual, virou moda a criação de órgãos estatais com o propósito de bisbilhotar o que as pessoas falam nas redes sociais, sob o pretexto de combater a desinformação, notadamente sobre Instituições governamentais, seus integrantes ou, ainda, sobre órgãos do Poder Judiciário (sobre o tema, vide: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/o-big-brother-tupiniquim/2569185506?_gl=1* ).
Isso sem contar que tais órgãos podem pescar fatos para incriminar alguém em especial em fenômeno conhecido como “fishing expedition” (pesca probatória), vedado nos sistemas constitucionais de países democráticos. Toda investigação deve partir de fatos para pessoas e não o contrário, o que configura perseguição e evidente abuso de autoridade (sobre o tema vide: https://youtu.be/YV9xv4fvWe4?si=kjsTOn8dZMZV8jtD).
E isso me faz lembrar a “crimideia” (“thinkpol” em novilíngua) e a polícia do pensamento na distopia 1984, de George Orwell. Punia-se o simples pensar, mediante vigilância constante, por todos os meios, para encontrar e eliminar membros da sociedade que simplesmente cogitavam (pensavam) em desafiar o sistema.
Tal proceder é típico de países totalitários em que a mão do Estado pesa sobre a cabeça de todos e por quase tudo que não interesse à cúpula do poder.
Prevenir e punir crimes claro que é medida necessária em todo e qualquer país minimamente civilizado. No entanto, caças às bruxas por simplesmente pensar algo e bravatear nas redes sociais, nas mesas de bares e em outros ambientes privados, é ato impensado em um país democrático, típico de nações com regimes despóticos em que as pessoas são caladas e até mesmo uma mera expressão de um pensamento por meio escrito ou verbal pode render investigação, prisão e condenação a penas altíssimas, superiores a diversos crimes realmente graves, como homicídios, estupros e tráfico de drogas.
Autor: César Dario Mariano da Silva – Procurador de Justiça – MPSP. Mestre em Direito das Relações Sociais – PUC/SP. Especialista em Direito Penal – ESMP/SP. Professor e palestrante. Autor de diversas obras jurídicas, dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal, Manual de Direito Penal, Lei de Drogas Comentada, Estatuto do Desarmamento, Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade, publicadas pela Editora Juruá.