Reporto-me à minha infância quando o “faz de conta” era uma brincadeira que nos motivava a viver momentos de fantasia que se mesclavam com um misto de ausência de responsabilidade, tão peculiar àquela fase de nossas vidas. Era muito prazeroso, e a alegria contagiava a mente de todas as crianças naquelas situações hipotéticas e imaginárias.
Parece que muito das nossas vidas, na atualidade, é um reflexo daquele “faz de conta”. Tudo pretendendo se demonstrar sério e verdadeiro, mas impregnado de falsas realidades, similar a um mundo que emerge de um filme de Hitchcock.
Hitchcock, com sua técnica “zoom” que provocava uma sensação de vertigem e seu roteiro sempre baseado em culpar um personagem por um crime que não cometeu, impactava os cinéfilos da época com seu gosto pelo macabro e o sacrifício da lógica, além de tantas outras características que poderíamos considerar impactantes.
Hoje, quando leio na Folha de São Paulo que a nossa Corte Máxima condenou mais sessenta e três (63) réus do chamado 8 de janeiro, perfazendo agora já 480 sentenciados, sinto uma profunda tristeza pela forma da condução desses julgamentos e pela ausência de humanidade em relação às pessoas que estão submetidas a estas fatídicas decisões.
Como comentado por André Marsiglia, “tudo sem debates, sem individualização das condutas, sem acesso à ampla defesa, em plenário virtual, com a tese do relator imperando sobre tudo e todos.” Acusadas de invasão de prédios públicos, as pessoas são julgadas “de baciada”, a 17 anos de prisão, como afirma o eminente jurista.
Vemos o Senado Federal, que tem a prerrogativa constitucional de dar um basta a este roteiro macabro, manter-se inerte e “faz de conta” que está representando o Povo.
Vemos o próprio Supremo Tribunal “fazer de conta” que está julgando com imparcialidade, respeito à Constituição e obediência à legislação penal brasileira.
Vemos os militares “fazer de conta” que exercem um papel essencial na segurança dos cidadãos brasileiros. Simplesmente lavaram as mãos e continuaram no seu mister de fantasias. Naquele fatídico dia, “fizeram de conta” que estariam protegendo os cidadãos que se encontravam acampados em frente do Quartel no Distrito Federal, dizendo-lhes que estariam em segurança. A realidade se demonstrou macabra ao se verem despejados num galpão, sem a mínima salubridade.
Vemos os próprios brasileiros “fazer de conta” que está tudo normal, ressalvados aqueles poucos que “fazem de conta” que estão preocupados com a defesa das nossas liberdades.
Realmente, muitos poucos têm coragem e ousadia para se manifestar em favor daqueles que estão sofrendo as injustiças a que foram levados a se submeter.
Não podemos “fazer de conta” que Clezão, Eder Parecido e mais outros dois presos não faleceram no cativeiro em decorrência de problemas de saúde. Eles e provavelmente muitos outros que continuam presos, poderão ter o mesmo destino se privados do devido cuidado com suas fragilidades. Eles não “fizeram de conta” que estavam doentes. VaIldete Ferreira, de 73 anos, condenada a 13 anos, também não “faz de conta” que tem grave problema de saúde. Como ela, muitas outras, ressaltando Maria do Carmo, 62 anos, Adalgisa Dourado, 64 anos, todas condenadas e com saúde debilitada.
Poderia nomear todas as mulheres que foram presas e condenadas por buscarem exercer seu direito de cidadã, acreditando que a Constituição Federal seria respeitada pelos detentores do Poder neste país. Não sabiam que o respeito à Constituição Federal seria um “faz de conta”.
E o mais triste de tudo isto é que inexiste individualização da pena. As decisões são proferidas de forma desumana, com penalidades superiores aos crimes mais hediondos, “fazendo de conta” que se está fazendo justiça e que a chamada democracia está sendo respeitada e preservada.
Queria muito estar ainda vivendo um mundo do “faz de conta” infantil, não uma macabra história que ceifa vidas, destrói famílias, desmorona castelos verdadeiros, no eterno “faz de conta” que representa e impõe ideologias insensíveis e egocentradas.
Quero acordar e viver uma nova história, baseada em uma realidade justa e verdadeira.
Preciso contar um segredo: nunca gostei dos filmes de Hitchcock