Se tem uma coisa que me choca, além das injustiças que se tornaram lugar comum no Brasil nos últimos anos, é a discriminação religiosa.
Somos um país eminentemente cristão, mas que convive harmoniosamente com todas as religiões.
Aqui há os que creem em reencarnação, ressureição, comunicação com os espíritos, espírito santo, santos, orixás e tantas outras crenças típicas de cada religião.
E nem poderia ser diferente diante de nossa multiculturalidade, o que torna o Brasil um país diferente de grande parte dos outros do globo.
Por isso, quando vejo um religioso de projeção nacional, que até então admirava, dizer que determinada religião diversa de sua crença é demoníaca por crer em reencarnação e comunicação com os espíritos, e que aqueles que a professam não são cristãos, dói no fundo da alma.
Esse tipo de discriminação ocorreu em um dos períodos mais macabros da idade média em que pessoas de outras religiões foram perseguidas pela Igreja e, muitas vezes, entregues ao braço secular (Estado), a fim de que fossem mortas na fogueira por serem consideradas hereges, após torturas e julgamento pelo Santo Ofício da Inquisição.
Na inquisição, o método de julgamento era, em regra, o inquisitivo. Assim, não havia defesa, e se houvesse, era engessada. O juiz acusava, colhia as provas e julgava. O processo era secreto e o acusado não sabia o nome do delator, das testemunhas e não tinha acesso às provas contra si produzidas.
O processo poderia ser transformado em acusatório, caso alguém delatasse uma pessoa e se dispusesse a provar a alegação. O delator era alertado sobre as penas do talião no caso de falso testemunho. Ou seja, poderia sofrer a mesma pena que pretendia para o outro. Por essa razão, esse sistema caiu logo em desuso.
E a justiça comum, isto é, a do Estado, era ainda mais rígida. Vigorava a prova tarifada, ou seja, para determinados crimes haveria necessidade de tantas testemunhas. Mas a prova cabal era a confissão, sendo certo que era permitida a tortura pela lei, que inclusive a regulava. As normas penais eram obscuras e, em de regra, consistiam em longos trechos. Isso dava ao juiz a possibilidade de interpretá-la ao seu bel prazer.
No regime feudal a jurisdição pertencia ao senhor da terra e era exercida sobre todas as pessoas que ali viviam. O direito de acusar pertencia apenas à vítima ou a seus familiares. O procedimento era público, oral e formalista. A prova era tarifada e cheia de fórmulas. Havia igualdade de direitos entre as partes, com instrução contraditória e pública. Visava satisfazer o interesse individual lesado e não o interesse público de repressão ao crime.
Quando as testemunhas não fossem aceitas ou se não houvesse testemunhas suficientes, eram aplicados os duelos e as ordálias, também conhecidas como “juízos de Deus”. Como Deus estaria com o inocente, ele sempre venceria o duelo e não se machucaria nas provas. Interessante que os nobres de alto nível poderiam indicar algum subordinado para representá-lo. Devido à firme oposição da Igreja, as ordálias foram sumindo até desaparecer no século XIV.
Assim, no regime feudal, o juiz era um mero árbitro e se limitava a verificar a presença ou não de provas formais concludentes.
Paulatinamente, foi instaurada a justiça da Igreja. Primeiro para o clero e após passou a ser aplicada a fatos que interessassem à Igreja, notadamente a heresia.
Para aquela pessoa acusada de heresia pelo Santo Ofício da Inquisição, bastava que abdicasse de seus cultos, ou que ao menos fingisse aceitar a Igreja, para não ser morta. Porém, muitas delas preferiam morrer a negar sua religiosidade, o que demonstra o quanto se apegavam à religião e o pequeno valor que davam ao próprio sofrimento e à vida. Só que, mesmo aceitando a Igreja, ainda assim seriam punidas, inclusive com pena de prisão e confisco de seus bens.
Naquela época era inconcebível falar em liberdade religiosa. A religião das pessoas deveria ser a oficial do Estado. E outras religiões também massacravam aqueles que professassem o catolicismo. E a Igreja, devido aos costumes e legislação da época, foi obrigada a agir daquela forma.
Por isso, viam os hereges como revolucionários, que deveriam ser combatidos para não destruírem o sistema (Igreja). Aliás, era o Governo e o próprio povo que muitas vezes exigiam punição para os hereges. Tanto que o povo nunca atacou a inquisição. Pelo contrário, a aceitava como algo normal, não diferente da polícia de nossa época.
Interessante que a Igreja não aplicava a pena de morte. Quando verificava que o acusado não iria se converter, abdicava de cuidar do caso e o entregava ao braço secular (autoridades civis) para aplicação da sanção máxima.
Com isso, quero dizer que discriminar uma ou outra religião já foi motivo até mesmo para julgamentos absolutamente arbitrários em que aquele que mantivesse sua crença e não aceitasse os mandamentos da Igreja, no mais das vezes, era entregue ao Estado e seu destino era a morte, inclusive na fogueira.
Portanto, inadmissível alguém que realmente crê em Cristo não aceitar outra religião, inclusive Cristã, mas com doutrina e crenças diferentes da sua, tida por ele como demoníaca, amedrontando e incitando seus fiéis a verem, até mesmo amigos dessas religiões, como satanistas ou algo do gênero.
Anoto, aliás, que tal proceder, de tão grave que é, configura até mesmo crime de discriminação racial, previsto no artigo 20 da Lei nº 7.716/1989, que dispõe: “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e multa”. Além do mais, é considerado pela Constituição Federal delito imprescritível, dada à sua gravidade.
Triste, muito triste, na atualidade, e em um país multirreligioso qualquer tipo de discriminação de crença, que pode levar a uma divisão entre as pessoas que acreditam em outras formas de crer em Deus e em Cristo.
PS: embora muitos possam entender estar me referindo sub-repticiamente aos julgamentos por crimes políticos atuais e à discriminação do Estado e por parte da grande imprensa a quem tem uma ideologia diferente da deles, não foi a minha intenção.