Estamos testemunhando, no século XXI, um processo brutal de desidratação da democracia. Diferente dos golpes de Estado cinematográficos do século passado, o que vemos agora é a erosão lenta, sorrateira e estratégica dos pilares democráticos.
E no centro desse colapso silencioso está o enfraquecimento da imprensa, o domínio das castas sobre os recursos do Estado e a manipulação das consciências por meio da polarização e das fake news.
Segundo o Democracy Report 2024, do Instituto V-Dem, mais de 70% da população mundial vive hoje em regimes autocráticos ou híbridos. Democracias liberais plenas — aquelas onde há liberdade de imprensa, eleições livres, judiciário independente e pluralismo político real — abrigam apenas 13% da humanidade. A democracia, portanto, deixou de ser o sistema majoritário no mundo. A pergunta que devemos fazer é: como chegamos até aqui?
A resposta está em camadas. A primeira delas é a imprensa. Quando veículos são sufocados economicamente, jornalistas são perseguidos, redações fechadas ou cooptadas, a sociedade perde sua capacidade de ver. Sem jornalismo independente, a corrupção se prolifera, a violência política se banaliza, e as mentiras ganham status de verdade. O Brasil vive essa realidade: nos últimos anos, presenciamos um crescimento exponencial de ataques à mídia e uma redução dramática na transparência do poder público.
Mas o cenário é global. Na Hungria, Orbán criou um império midiático alinhado ao seu governo. Nas Filipinas, Maria Ressa, Prêmio Nobel da Paz, foi silenciada com processos judiciais. Nos Estados Unidos, jornalistas foram hostilizados e agredidos em manifestações políticas. Em toda parte, a imprensa tornou-se o inimigo dos regimes que se dizem democráticos, mas agem como autocracias digitais.
A segunda camada é o uso da desinformação como método de governo. Não se trata mais apenas de fake news esporádicas. Trata-se de uma engenharia completa de desorientação coletiva. Plataformas como o X, Facebook e YouTube, algoritmicamente organizadas para premiar o escândalo e o extremismo, são armas nas mãos de grupos organizados que atuam para criar caos e capturar a opinião pública. Dados do Center for Countering Digital Hate mostram que 70% das fake news políticas mais engajadas nas redes sociais partem de menos de 5% dos perfis — são máquinas industriais de mentira.
Essas máquinas alimentam a polarização tóxica: uma lógica binária, infantilizada e emocional, que impede o debate, desumaniza o outro e transforma adversários em inimigos. Quando tudo é guerra, a razão perde. E quando a razão perde, quem vence são as castas, novas aristocracias travestidas de representação popular.
Essas castas — formadas por setores da política, do mercado, do sistema financeiro e das corporações digitais — controlam narrativas, orçamento e legislação. Usam a democracia apenas como fachada, enquanto esmagam a mobilização popular, as vozes divergentes e os canais de resistência institucional. A polarização é o ópio das massas digitais: enquanto discutimos memes, nos roubam a soberania.
Essa dominação se dá também por meio do emburrecimento coletivo. Ao sucatear a educação, desvalorizar a cultura e esvaziar o pensamento crítico, fabricam-se gerações inteiras incapazes de compreender estruturas de poder. E assim, naturaliza-se o absurdo: negacionismo científico, revisionismo histórico, culto à violência, criminalização da imprensa, demonização da política.
Mas a história ainda está em construção. E há esperança. Experiências de resistência democrática — no Chile, na Colômbia, em Portugal, entre os movimentos indígenas do Equador, nos protestos das mulheres iranianas — mostram que a democracia pode florescer mesmo em solo infértil, desde que haja coragem cívica, mobilização social e informação de qualidade.
No Brasil, precisamos urgentemente reconstruir os alicerces da cidadania. Isso começa por defender o jornalismo livre, financiar a educação pública crítica, regular as big techs com responsabilidade, punir quem lucra com a mentira e reoxigenar os canais de participação política. A democracia não é um dado — é uma construção permanente.
Como disse Hannah Arendt, “o ideal de uma sociedade livre está na convivência com a pluralidade, e não na sua negação”. Se queremos evitar que a democracia se torne apenas uma palavra vazia em discursos protocolares, precisamos agir — agora — para que a verdade retome seu lugar de honra na vida pública.