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O autocuidado como chave para o equilíbrio: lições milenares para o nosso cotidiano – por Cristiane Sanchez

Você já reparou como os aviões sempre dão a mesma instrução antes de decolar? “Em caso de despressurização da cabine, máscaras de oxigênio cairão automaticamente. Coloque a sua máscara antes de ajudar outras pessoas.” Essa frase, repetida milhares de vezes todos os dias, resume o que chamamos de autocuidado: antes de cuidar do outro, precisamos cuidar de nós mesmos. Pode parecer óbvio, mas no dia a dia, quantas vezes esquecemos disso?

Seja você profissional da saúde, mãe, pai, estudante ou trabalhador, a correria cotidiana nos empurra para colocar as necessidades dos outros em primeiro lugar. Alguém precisa de ajuda, o prazo do trabalho aperta, as crianças demandam atenção, e a nossa saúde vai ficando para depois. Mas esse “depois” muitas vezes não chega. É aí que entra o autocuidado. Não como um luxo, mas como um ato de responsabilidade consigo mesmo e com os outros.

Essa ideia não é nova. Há mais de dois mil anos, o Huangdi Neijing, o Clássico do Imperador Amarelo, texto fundamental da Medicina Tradicional Chinesa, já apontava que o ser humano é um microcosmo refletindo o macrocosmo. Em outras palavras, o que acontece dentro de nós é um espelho do que acontece fora, e vice-versa. Se a natureza tem ciclos, transformações e pausas, por que insistimos em viver como se fôssemos máquinas que nunca param?

  • As pessoas do passado sabiam algo que nós esquecemos

O Neijing descreve que, no passado, as pessoas “praticavam o Tao, o Caminho da Vida”. Elas respeitavam os ciclos naturais, mantinham horários regulares para comer, levantar-se e deitar-se, evitavam excessos e buscavam harmonizar o corpo com o universo. Por isso viviam mais de cem anos com vitalidade.

Parece distante da nossa realidade? Talvez não tanto. Pense no seu último fim de semana: você conseguiu dormir no mesmo horário ou foi dormir tarde, rolando a tela do celular? Fez refeições com calma ou comeu qualquer coisa no caminho, entre um compromisso e outro? O corpo humano é um sistema sofisticado, mas ainda depende de ritmos — sono, alimentação, descanso, movimento. Ao ignorá-los, colhemos desequilíbrios.

Essa passagem do livro é como um lembrete: autocuidado não é apenas um banho demorado no domingo ou um spa uma vez por ano. É sobre pequenas práticas diárias que nutrem e equilibram o corpo, e isso vale tanto hoje quanto há milênios.

  • Autocuidado não é egoísmo, é sustentabilidade

Muita gente associa autocuidado a egoísmo. “Se eu parar para mim, vou deixar alguém na mão”, pensam. Mas a verdade é o contrário. Quando você cuida de si, você se torna mais presente, mais centrado, mais disponível para cuidar dos outros.

O livro clássico fala sobre “manter-se centrado no espírito, prevenindo-se contra o desperdício de energia e promovendo o fluxo constante de qi e sangue”. Se traduzirmos isso para uma linguagem do dia a dia, é como manter a bateria do celular carregada. Você não espera a bateria chegar a 1% para só então colocar para carregar — ou pelo menos não deveria. Com a nossa energia vital, o raciocínio é o mesmo: pequenas pausas, alimentação consciente, sono reparador e movimento físico são formas de manter essa “bateria” cheia.

Pense nos profissionais de saúde: enfermeiros, médicos, acupunturistas, terapeutas. Eles dedicam horas a aliviar a dor e o sofrimento dos outros. Se não estiverem equilibrados, podem adoecer emocional ou fisicamente. E isso não é exclusividade dessa área. Quem cuida de crianças, lidera equipes, empreende ou mesmo estuda intensamente também precisa dessa “recarga” constante.

  • Os pilares do autocuidado segundo o Huangdi Neijing

Vamos destrinchar alguns conceitos trazidos pelo texto clássico e traduzi-los para a nossa realidade contemporânea:

1. Nutrição adequada e horários regulares: Comer bem não é apenas escolher alimentos saudáveis, mas também respeitar os horários das refeições. Quantas vezes você pula o café da manhã ou janta tarde demais? O corpo se desorganiza quando não recebe sinais claros de rotina. Um exemplo simples: dormir tarde e acordar cedo todos os dias desequilibra hormônios, aumenta o apetite e prejudica a imunidade.

    2. Descanso e sono: O Neijing reforça que levantar-se e deitar-se em horários regulares é essencial. O sono é como a “atualização de software” do corpo. Sem ele, as funções físicas e mentais ficam lentas. Não adianta “compensar” dormindo um dia inteiro no fim de semana; o corpo precisa de consistência.

    3. Exercício moderado e harmonioso: As pessoas do passado “formulavam exercícios para promover o fluxo de energia e se harmonizar com o universo”. Hoje, temos academias, yoga, pilates, caminhadas, dança. O importante não é praticar o treino mais intenso, mas sim escolher algo que promova movimento e prazer.

    4. Evitar excessos: Em um mundo que celebra o “mais é mais”, o Neijing recomenda moderação. Excesso de trabalho, de comida, de estímulos digitais, de preocupações, tudo isso sobrecarrega corpo e mente. Equilíbrio é saber dizer “não” também.

    5. Manter-se centrado no espírito: Essa talvez seja a parte mais difícil de traduzir. “Estar centrado no espírito” significa cultivar um estado interno de calma. Pode ser por meio da meditação, da oração, do contato com a natureza, da respiração consciente. São pausas que nos reconectam com quem somos, além das tarefas que fazemos.

      • Comparando com o nosso dia a dia

      Se pensarmos bem, a sabedoria do Neijing não é muito diferente das recomendações modernas de saúde. Médicos, nutricionistas, enfermeiros e psicólogos também falam sobre alimentação equilibrada, sono de qualidade, atividade física e saúde mental. A diferença é que, na Medicina Tradicional Chinesa, tudo isso está conectado por um fio invisível: o qi, a energia vital.

      Podemos comparar esse conceito com a água que corre por encanamentos. Quando a água flui bem, todo o sistema funciona: torneiras abertas, chuveiro funcionando, plantas regadas. Mas se há um bloqueio, a pressão aumenta, vazamentos aparecem, e o sistema inteiro sofre. Assim é o corpo: emoções reprimidas, má alimentação ou falta de descanso criam “bloqueios” que se manifestam como doenças físicas ou emocionais.

      Outro exemplo do cotidiano: um carro precisa de combustível, óleo, manutenção e pausas para não superaquecer. Se dirigirmos sem parar, sem trocar óleo, sem abastecer direito, uma hora o motor quebra. O autocuidado é essa manutenção preventiva do corpo e da mente.

      • Autocuidado e estações do ano: aprendendo com a natureza

      Um bom ensinamento desse clássico da MTC é que devemos “adaptar-nos às mudanças nas influências macrocósmicas sazonais e anuais”. Isso significa que nosso corpo não é igual o ano todo. No inverno, ele pede mais descanso e alimentos quentes. No verão, precisa de hidratação e alimentos frescos. Quantas vezes ignoramos isso e seguimos uma rotina idêntica em todas as estações?

      Observar a natureza pode ser um bom guia. Árvores não florescem o ano inteiro. Animais hibernam, plantas entram em dormência, rios secam para depois se encher. E nós? Continuamos acelerados como se estivéssemos sempre na primavera. O resultado é exaustão. Autocuidado é respeitar o próprio “clima interno”.

      • O que significa autocuidado na prática hoje

      Você não precisa mudar tudo de uma vez. Autocuidado não é um projeto de reforma radical, mas uma sequência de pequenos ajustes diários. Aqui vão algumas ideias inspiradas pelo Neijing:

      1. Estabeleça um horário fixo para dormir: mesmo que seja 15 minutos mais cedo, isso já envia sinais de regularidade ao corpo.

        2. Crie uma rotina matinal calma: em vez de checar o celular assim que acorda, faça três respirações profundas ou alongue-se.

        3. Faça pausas conscientes: levante-se a cada hora, beba água, olhe pela janela.

        4. Escolha um exercício que goste: não para “queimar calorias”, mas para mover energia e liberar tensão.

        5. Modere estímulos: menos telas à noite, menos café em excesso, menos multitarefas.

        6. Nutra seu espírito: reserve cinco minutos para meditar, rezar, escrever num diário ou apenas ficar em silêncio.

        São passos simples, mas cumulativos. Pense neles como pequenas moedas colocadas todos os dias num cofre. Com o tempo, o saldo cresce e você sente o resultado.

        • Autocuidado como ato de prevenção

        Saúde e bem-estar só podem ser alcançados mantendo o fluxo constante de energia e nutrindo-se preventivamente. Na prática, isso significa não esperar adoecer para então cuidar de si. É como revisar o carro antes da viagem, e não só depois que ele quebra na estrada.

        A medicina moderna também avança nessa direção: prevenção é mais eficaz (e mais barata) do que tratar doenças já instaladas. O autocuidado é a forma mais acessível de prevenção que temos ao nosso alcance.

        • O impacto do autocuidado no mundo ao redor

        Cuidar de si mesmo não transforma apenas a sua vida, mas também o ambiente ao seu redor. Quando você está equilibrado, suas relações melhoram, seu trabalho flui com mais clareza, sua paciência aumenta. É um efeito dominó positivo.

        Pense em alguém que admira: talvez um professor, um líder comunitário, um parente. Pessoas que inspiram geralmente têm algo em comum: parecem calmas, presentes, inteiras. Isso não é por acaso. É resultado de práticas, conscientes ou não, de autocuidado.

        • Voltar ao essencial

        Viver bem é estar em harmonia com os ritmos da vida. Autocuidado não é uma moda passageira nem uma lista de produtos para comprar. É uma postura, um compromisso diário de ouvir o corpo, respeitar os ciclos, nutrir a energia e cultivar a presença.

        Da próxima vez que se sentir culpado por parar para cuidar de si, lembre-se: até as pessoas do passado, com vidas menos agitadas que as nossas, faziam disso um princípio fundamental. E nós, que vivemos num mundo hiperconectado e cheio de pressões, precisamos disso mais do que nunca.

        Talvez não seja possível mudar toda a rotina de uma vez. Mas cada escolha, dormir mais cedo, respirar fundo antes de responder um e-mail, comer com calma, caminhar ao ar livre, é um passo no Caminho da Vida. Um passo que reverbera não apenas na sua saúde, mas na saúde de todos à sua volta.

        O autocuidado é um ato de amor-próprio e de responsabilidade coletiva. Ele recarrega nossa energia vital, equilibra nosso corpo e nos conecta a algo maior do que nós mesmos. O Huangdi Neijing nos mostra que essas práticas não são apenas tradicionais, mas atemporais.

        Assim como no avião, precisamos colocar nossa máscara primeiro para poder ajudar o outro. Autocuidado não é luxo; é base. É hora de lembrarmos disso, e praticarmos, todos os dias.

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