Fico atônito quando vejo curiosos ou teóricos discursando como doutores em tráfico de drogas e como a descriminalização da posse e porte de entorpecente para uso pessoal será boa para o combate ao crime.
O fato de a conduta de portar ou possuir maconha para uso pessoal, na quantidade de até 40 g, ser apenas infração administrativa, como recentemente decidiu o STF arvorando-se em legislador, induz à conclusão lógica de que ocorreu um “liberou geral”, posto que as medidas educativas são ridículas e as cumpre quem quiser.
As medidas que poderão ser aplicadas, segundo o STF, são as seguintes: I) advertência sobre os efeitos da droga; II) comparecimento à programa ou curso educativo (art. 28, “caput”, da Lei de Drogas). Outra medida antes aplicada era a prestação de serviços à comunidade, hoje vedada pela Excelsa Corte, por se tratar de medida com cunho sancionatório, típica de pena e não de mera medida educativa.
Para garantia da execução das medidas educativas a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a: I – admoestação verbal; II – multa (§ 6º do art. 28 da Lei de Drogas).
Negando-se o condenado, injustificadamente, a se submeter à medida fixada, o juiz deverá adverti-lo verbalmente e, não surtindo efeito, aplicar-lhe multa. A intenção do dispositivo é obrigar o sentenciado a cumprir a medida que lhe foi aplicada na sentença.
O descumprimento da medida aplicada por ocasião da “condenação”, para que dê ensejo à aplicação de advertência ou de multa, deve ser injustificado. Assim, deverá ser dada oportunidade para que o condenado justifique o ocorrido. Não havendo a justificativa ou sendo as razões apresentadas para o descumprimento insuficientes, cabe ao Magistrado aplicar, primeiramente, a advertência verbal. Não surtindo efeito, ou seja, não sendo cumprida a medida determinada, deverá o Juiz aplicar a multa.
Deve ser observado que, no caso de não comparecimento injustificado do condenado para ser advertido sobre os efeitos da droga, não há sentido em ser advertido verbalmente para se submeter à advertência aplicada anteriormente. Nesse caso, até por economia processual, comparecendo para ser advertido verbalmente (art. 28, § 6º, I), pode o Magistrado aproveitar o ato e advertir-lhe sobre os efeitos da droga (art. 28, caput, I).
Na realidade, trata-se de medidas inócuas, uma vez que o condenado as cumprirá se quiser. Não querendo cumprir a medida fixada em sentença, basta não comparecer ao local determinado para sua execução. Caso advertido verbalmente e, assim mesmo, negar-se ao cumprimento da medida, será aplicada a multa. Tendo dinheiro é só pagá-la; não tendo condições financeiras, a execução será infrutífera e nada acontecerá.
Ademais, cuida-se de infração de pequeno potencial ofensivo, passível de transação penal no Juizado Especial Criminal, em que poderão ser aplicadas referidas medidas em acordo entre as partes sem que haja condenação por infração administrativa. Assim, ao marinheiro de primeira viagem, isto é, que ainda não tenha sido flagrado com maconha para consumo pessoal e realizado transação penal, sequer processo haverá.
Com efeito, na prática, nada acontecerá com a pessoa flagrada com até 40 g de maconha, exceto se houver outros elementos a indicar que a droga se destinava ao comércio ilícito, oportunidade em que será autuado por tráfico de drogas com todas as consequências previstas na legislação.
Como já falei em outras oportunidades, a hipótese é tão absurda que fica até difícil comentar. Polícia detendo pessoa por infração administrativa, o que não é sua função, nos termos do artigo 144 da Carta Magna. Membro do Ministério Público oferecendo a acusação por conduta que não é criminosa. E Magistrado aplicando sanção administrativa, fugindo de sua competência. Tudo isso porque não houve a necessária discussão no âmbito do Poder Legislativo e aprovação, ou não, de lei descriminalizando a posse e o porte da maconha para consumo pessoal.
Anoto por oportuno que a maconha atualmente não é a droga preferida do crime organizado, talvez porque seja mais barata. O crime organizado prefere vender cocaína e seu subproduto, o crack, que, embora seja relativamente barato, tal como a maconha, vicia em pouquíssimo tempo e é muito mais usado pelo dependente. Normalmente, a maconha é apreendida juntamente com outras drogas. Excepcionalmente, prende-se o traficante comercializando apenas a maconha.
Claro que o comércio ilegal da maconha existe e é rentável para a criminalidade organizada. No entanto, com a liberação do porte para o uso próprio (até 40 g) de nada afetará as facções criminosas, que continuarão a vendê-la e a outras espécies de drogas. Mesmo que a maconha seja vendida comercialmente, ainda assim haverá seu tráfico, posto que, por não pagarem impostos e não se submeterem a controle, os traficantes a venderão por menor preço.
O que vai ocorrer é mais pessoas viciadas e, certamente, aumentarão os usuários de outras drogas mais potentes, vez que, em regra, a primeira droga usada pelo viciado é a maconha, que “progride” para outras, como cocaína, crack e metanfetaminas.
Hodiernamente, o traficante dificilmente é flagrado com grande ou média quantidade de droga. O usual é ele trazer consigo pequena quantidade e mantém em depósito a quantidade maior em algum local escondido. E assim age para, no caso de ser preso, dizer que a droga apreendida era para seu próprio consumo e para não perder a mercadoria.
Quantificar a droga para diferenciar o traficante do mero usuário será legalizar o que o traficante já normalmente o faz. Certamente, haverá enormidade de traficantes trazendo consigo pequena quantidade de maconha para se passar por usuário, anotando que 40 g longe está de ser pequena quantidade, vez que, a depender do tamanho do cigarro elaborado, poderão ser de 40 até 120 “fininhos” ou “baseados”, como os maconheiros costumam falar.
E tenho a plena certeza de que os advogados pedirão para essa quantidade ser aplicada analogicamente a outras espécies de drogas. E temo que os Tribunais Superiores assim entendam, o que apenas aumentará o desastre já instalado com a legalização do porte para o consumo pessoal da maconha.
Antevejo o pior com a liberação da maconha para uso recreativo e já cansei de escrever e falar sobre isso.
Diante da concreta possibilidade de o Supremo Tribunal Federal julgar inconstitucional a criminalização da posse e do porte de drogas para consumo pessoal de forma ilícita, no caso a maconha, bem como o cultivo de plantas para a produção dela com o mesmo fim, o que já ocorreu, o Senador Rodrigo Pacheco, em boa hora e de forma lúcida e sensata, apresentou proposta de emenda constitucional inserindo no artigo 5º da Carta Magna o direito fundamental de ficar nosso país livre das drogas, tanto a nível do uso quanto do seu comércio ilícito. Diz a proposta:
“Art. 1º O caput do art. 5º da Constituição Federal passa a viger acrescido do seguinte inciso LXXX:
Art. 5º ………………………………………………………….
………………………………………………………………………
LXXX – a lei considerará crime a posse e o porte, independentemente da quantidade, de entorpecentes e drogas afins sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar” (1).
Aliás, para deixar bem claro o que pensa a sociedade brasileira, a maior interessada, poderia ser realizado plebiscito, aproveitando as eleições municipais. Tenho certeza de que a imensa maioria da população seria frontalmente contra essa barbaridade que o Supremo Tribunal Federal almeja fazer.
Às vezes penso que existe uma casta de pessoas que vive em outro país por desconhecer a realidade nacional, aquela vivenciada pela população comum, que sai às ruas diariamente sem nenhum tipo de segurança armada e conhece perfeitamente o que acontece em sua cidade.
Dizer que a repressão ao comércio ilícito de drogas da forma como é feita não está surtindo efeito e, por isso, melhor legalizar seu porte para consumo pessoal, que teria efeito na contenção do tráfico, é medida que não deu certo em diversos países, dentre eles o Uruguai, com aspectos sociais muito parecidos com o nosso. Lá, além de ter aumentado o número de dependentes e viciados, os crimes ligados diretamente à traficância também foram incrementados, como o homicídio.
Até mesmo Estados Norte-Americanos estão sentindo de perto o malefício da liberação da maconha para uso recreativo, bastando atentar para o que ocorre na Califórnia em que há uma legião de viciados perambulando pelas ruas de várias das grandes cidades. Há, aliás, cidades que cheiram à maconha, sendo o maior exemplo São Francisco.
Será que é isto que a sociedade brasileira quer? Posso assegurar que não, vez que dificilmente há uma família no Brasil que não tenha um parente ou mesmo um amigo próximo que não passe pela agrura de ter um filho, irmão, marido, esposa, primo ou tio usuário ou, pior, viciado neste produto maléfico, que destrói famílias e corrói a sociedade.
A cada dia que passa mais fico temeroso com o futuro que se avizinha para o Brasil.
1) Sobre o tema, escrevi artigos para a Jusbrasil. Seguem os links: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/a-criminalizacao-da-posse-e-do-porte-de-drogas-como-direito-fundamental/2289867349?_gl=1* ; https://www.jusbrasil.com.br/artigos/ativismo-judicial-o-flagrante-atentado-a-separacao-dos-poderes-pode-o-legislativo-criminalizar-o-porte-de-maconha-para-consumo-pessoal/2573935699?_gl=1*
Autor: César Dario Mariano da Silva – Procurador de Justiça – MPSP. Mestre em Direito das Relações Sociais – PUC/SP. Especialista em Direito Penal – ESMP/SP. Professor e palestrante. Autor de diversas obras jurídicas, dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal, Manual de Direito Penal, Lei de Drogas Comentada, Estatuto do Desarmamento, Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade, publicadas pela Editora Juruá.