Vivemos tempos em que a democracia, embora formalmente consolidada, enfrenta ameaças cada vez mais sofisticadas. Não são apenas investidas abertas contra o Estado de Direito, mas tentativas persistentes de corrosão institucional, de desacreditar as regras do jogo e de minar a própria ideia de convivência entre diferentes. No Brasil, após quase quatro décadas de redemocratização, assistimos a uma crescente tensão entre os pilares constitucionais e movimentos que, em nome de interesses circunstanciais, buscam relativizar a legalidade, deslegitimar instituições e promover rupturas. Por isso, é urgente reafirmar que a democracia não é apenas um regime de governo, é um valor inegociável.
Nossa história republicana está marcada por instabilidade e violência institucional. Golpes, fechamento do Congresso, censura à imprensa, perseguições políticas e cassações em massa foram recorrentes no século XX. Por muito tempo, prevaleceu a ideia de que as instituições podiam ser moldadas conforme a vontade do poder dominante. O autoritarismo se infiltrava nas brechas da legalidade, frequentemente em nome de uma suposta ordem.
A virada veio com a Constituição de 1988, que estabeleceu, pela primeira vez em nossa história, um pacto democrático amplo e plural. Fundamentada na dignidade da pessoa humana, na separação dos poderes e no controle dos excessos, a nova ordem constitucional instituiu regras claras e instituições sólidas, capazes de assegurar participação cidadã e proteção aos direitos fundamentais. Esse pacto permitiu ao Brasil viver seu mais longo período de estabilidade institucional desde a proclamação da República, mas estabilidade não é sinônimo de permanência, democracia se cultiva, permanentemente.
Nos últimos anos, esse pacto foi posto à prova. A disseminação de desinformação, os ataques ao processo eleitoral, a incitação à ruptura democrática e os episódios de violência política desafiaram diretamente o Estado de Direito. A tentativa de subversão do resultado das urnas, os discursos de ódio naturalizados no espaço público e, de forma dramática, a invasão das sedes dos Três Poderes em janeiro de 2023 compõem o episódio mais grave desde o fim do regime militar. As instituições resistiram, graças à firmeza de setores comprometidos com a legalidade, o Judiciário, o Parlamento, a imprensa livre e a sociedade civil mobilizada, mas esse enfrentamento está longe de ter terminado.
Um dos alvos preferenciais dessa estratégia de desestabilização tem sido o Supremo Tribunal Federal. Os ataques sistemáticos aos ministros da Corte, à sua legitimidade e às suas decisões não são apenas expressões de indignação política, são ações organizadas com o objetivo de minar um dos pilares centrais da democracia, o controle constitucional do poder. É uma tática coordenada de setores da direita radical que, inconformados com os limites que a democracia impõe, buscam enfraquecer a instituição que lhes impõe freios.
Esse movimento, é importante frisar, não é exclusivo do Brasil. Em diversas democracias contemporâneas, dos Estados Unidos à Hungria, da Polônia a Israel, vemos estratégias semelhantes, campanhas de deslegitimação dos tribunais constitucionais, tentativa de capturar o sistema de justiça, desinformação dirigida contra instituições independentes. Trata-se de uma ofensiva global contra o Estado de Direito, travada não com armas, mas com narrativas e ressentimentos cuidadosamente manipulados. Por isso, é fundamental estarmos atentos. A erosão democrática não se dá de uma vez, mas por meio de sucessivas concessões ao autoritarismo.
A defesa da democracia não pode ser apenas reativa, ela exige vigilância constante, educação para a cidadania, memória histórica e compromisso ético com os valores republicanos. Exige a valorização da institucionalidade como princípio, como uma arquitetura que garante previsibilidade, equilíbrio e justiça. Instituições fortes não são aquelas que se moldam ao poder de turno, mas aquelas que impõem limites legítimos e asseguram a alternância de poder com respeito à Constituição.
Não há democracia sem regras claras, quem vence eleições governa, mas governa dentro da legalidade. Quem perde fiscaliza, se reorganiza, disputa novamente, mas jamais tem o direito de ameaçar a ordem democrática. A alternância é sinal de saúde institucional, a tentativa de eternização ou de ruptura, de doença política.
O mundo contemporâneo oferece exemplos claros de democracias corroídas de dentro para fora. Em muitos casos, não há tanques nas ruas, há, sim, o enfraquecimento silencioso das regras, da confiança nas instituições, da liberdade de imprensa e da legitimidade da oposição. Quando nos damos conta, os alicerces já ruíram.
Por isso, a responsabilidade de preservar a institucionalidade é de todos, gestores públicos, parlamentares, magistrados, empresários, cidadãos. Não se trata de defender estruturas imutáveis, mas de assegurar que o poder seja exercido com responsabilidade, transparência e respeito às diferenças. A crítica às instituições é legítima e saudável, o ataque sistemático, desinformado e autoritário, não.
Temos hoje no Brasil uma geração inteira que não viveu os anos sombrios da ditadura. Isso é uma conquista, mas também um risco. O esquecimento favorece a repetição dos erros. É preciso manter viva a memória, lembrar que o autoritarismo não chega de repente, ele se insinua, conquista adesões e se fortalece no silêncio dos que se omitem. Por isso, não podemos banalizar ameaças a ministros da Suprema Corte, nem aceitar a ideia de que haja caminhos fora da política, da lei ou da Constituição.
Democracia é, sim, espaço de conflito, mas um conflito mediado por instituições, por valores compartilhados, por regras legítimas. Fora disso, resta a tirania ou a barbárie.
Reafirmar a importância da institucionalidade é afirmar o compromisso com o futuro. Um futuro em que as divergências políticas não sejam pretexto para o aniquilamento do outro, em que a lei seja instrumento de justiça, não de vingança, em que as eleições sejam respeitadas, os direitos garantidos e os valores republicanos cultivados com coragem.
Essa é a nossa tarefa coletiva, e ela não admite hesitação.