O Brasil vive um momento em que os atos do presente carregam consequências que ecoarão por gerações. Em apenas dois dias, a Câmara dos Deputados enviou dois recados inequívocos ao Supremo Tribunal Federal: aprovou, por ampla maioria, a urgência para tramitação da anistia aos condenados pelos ataques de 8 de janeiro de 2023, e passou a debater publicamente a relativização das penas impostas pela Corte.
Não se trata de um gesto isolado. É a tentativa de reconfigurar a ordem constitucional a partir de maiorias circunstanciais, reduzindo a democracia à condição de moeda de negociação política. O que está em jogo não é apenas o destino de réus ou de partidos, mas a força de nossa Constituição e a credibilidade do Estado de Direito.
- O significado jurídico da anistia
A Constituição Federal, em seu artigo 5º, XLIII, já traça limites claros: certos crimes não podem ser objeto de anistia ou graça, justamente porque representam riscos intoleráveis à sociedade. Os ataques de 8 de janeiro, julgados pelo STF como tentativa de golpe de Estado (artigos 359-L e 359-M do Código Penal), estão no coração daquilo que a ordem constitucional deveria tratar com o máximo rigor.
O artigo 60, §4º, IV, da Constituição consagra a separação de Poderes como cláusula pétrea. Ao aprovar uma anistia que esvazia sentenças transitadas em julgado do Supremo, a Câmara afronta essa cláusula e cria uma colisão institucional. Mais do que isso: fragiliza o artigo 85, que define como crime de responsabilidade atos que atentem contra o livre exercício dos Poderes.
É uma inversão de valores: em vez de defender a Constituição contra aqueles que a atacaram, o Parlamento discute como proteger os atacantes da própria Constituição.
- A jurisprudência ignorada
O Supremo, em julgados como a AP 1.060 e ações correlatas, firmou entendimento de que os atos de 8 de janeiro não foram protestos políticos, mas ataques orquestrados para abolir, mediante violência, o Estado Democrático de Direito.
A Corte tem sido categórica: “liberdade de expressão não pode se converter em salvo-conduto para práticas golpistas”. Essa jurisprudência consolida a linha de defesa da democracia. Ignorá-la, por meio de uma lei de anistia, equivale a anular a autoridade da Corte Suprema, convertendo decisões judiciais em peças descartáveis de um jogo político.
E há o risco da cascata jurídica negativa: se crimes contra a democracia podem ser perdoados por conveniência parlamentar, o que impede que, no futuro, se perdoem crimes de corrupção sistêmica, devastação ambiental ou violência política organizada? O precedente, uma vez aberto, é irreversível.
- O contraste com os cidadãos comuns
Enquanto isso, milhões de brasileiros vivem sob um sistema de justiça que não hesita em punir severamente pequenos delitos.
Um jovem que furta alimentos para sobreviver enfrenta a rigidez do art. 155 do Código Penal, raramente beneficiado pelo princípio da insignificância.
Um trabalhador flagrado com pequenas quantidades de droga, mesmo sem antecedentes, é criminalizado como ameaça social.
Famílias inteiras sofrem com execuções civis implacáveis por dívidas de pequeno valor, sem qualquer perspectiva de perdão.
É nesse país real que se discute anistiar crimes que atacaram a democracia em sua essência. O contraste escancara a seletividade do sistema: punição exemplar para os vulneráveis, complacência para os poderosos.
- O dever de mulheres e homens públicos
O parlamentar deve ter clareza de que a democracia é um patrimônio coletivo, não uma posse partidária. Nossa Constituição não pode ser reinterpretada ao sabor das maiorias ocasionais. Não há “pacificação” possível quando o preço é a impunidade de quem tentou abolir o Estado Democrático de Direito.
Ao contrário dessa postura elevada que se espera de mulheres e homens públicos, parte expressiva dos parlamentares adota uma conduta menor, guiada por conveniência política e cálculos eleitorais. Votando a favor de uma anistia que esvazia condenações legítimas do Supremo, transformam o Parlamento em escudo para delinquentes políticos e minam o prestígio das instituições. É uma escolha que não honra o dever de estadista, mas sim revela a má postura de representantes que deveriam zelar pelo povo e não pelo interesse de facções.
Esse enfraquecimento do conceito disciplinar que a lei atual traz pode gerar efeitos ainda mais profundos: abrirá espaço para o surgimento de um novo agente político nas próximas eleições — homens e mulheres que clamarão por um Brasil melhor, mais justo e verdadeiramente comprometido com a igualdade diante da lei.
O Parlamento tem a missão de legislar em nome do povo. O Supremo, de guardar a Constituição. Quando um invade a esfera do outro, a balança da República se rompe. E quando essa balança se rompe, os mais pobres, os mais frágeis, os invisíveis da nação são os primeiros a cair.
- Conclusão
Não podemos aceitar que crimes contra a democracia sejam tratados com benevolência enquanto cidadãos comuns são esmagados pelo rigor da lei. A anistia do 8 de janeiro não é apenas uma medida legislativa; é uma escolha de rumo histórico.
Se o Congresso insistir nesse caminho, estará criando uma jurisprudência política que ameaça a estabilidade institucional, enfraquece a separação dos Poderes e perpetua a desigualdade diante da lei.
O Brasil precisa de pacificação, sim. Mas a verdadeira pacificação não nasce da impunidade dos poderosos: nasce da justiça igual para todos, do respeito às instituições e da certeza de que a democracia não está à venda.
*Walter Ciglioni. Jornalista, Relações Públicas e Pós-graduando em Gestão Pública pela UniDrummond.
Conselheiro da FIESP na Comissão de Segurança Nacional.
Integrante da OAB-SP nas Comissões da Jovem Advocacia, Especial de Política Criminal e Penitenciária, Especial de Direito Tributário, Especial de Direito Internacional, Especial de Direito Constitucional e Permanente do Meio Ambiente (2025-2027).
Foi candidato ao Governo do Estado de São Paulo em 2014.