Nas primeiras estrofes da “Ilíada”, Homero descreve como a linda deusa Palas Atena, com seus olhos da cor de mar, travestida de pobre idoso viajante, foi acolhida no portal de Ítaca:
“- Salve, estrangeiro! Entre nós hás de ter agasalho condigno. Após o apetite acalmares, dirás o de que necessitas.”
Mais de 2.800 anos depois, eu visitava o sítio da guerra de Canudos.
Guiado por um soldado da Polícia Militar da Bahia, sertanejo da região e mateiro incomparável, chegamos a um rancho de pau-a-pique muito pobre.
Por certo a família já nos aguardava e, com alegria, fomos convidados a entrar. A dona da casa, sorridente, serviu farofa de carne seca com farinha e um pedaço de rapadura. Para beber, água da cacimba.
O casal não se sentou conosco, mas permaneceu de pé, em condições de nos servir nas nossas mínimas necessidades.
Pressenti que, ao consumir aquela refeição, nada restaria à família.
Hesitei. Meu guia foi discreto, mas muito direto:
- Coma! – E eu comi. Para intenso regozijo da família.
Depois, o guia me explicou que recusar a comida seria um anátema.
Ele daria um jeito de, delicadamente e sem ofender os anfitriões, repor o que fora consumido em futura visita.
Mas ofender a hospitalidade sertaneja, jamais.
O sentimento sagrado de hospitalidade, de acolher e alimentar o visitante antes mesmo de perguntar o que ele queria, reproduzido no ano 2000 naquele sertão bruto, transportou-me em um voo instantâneo aos portões de Ítaca.
Talvez Jung chamasse isso de arquétipo. Talvez esse sentimento tenha migrado dos gregos aos romanos, desses aos povos bárbaros da Lusitânia e, mais tarde, de Portugal para o Brasil.
O isolamento cultural preservou intocada essa virtude.
Igual ao cordel cantado no sertão, herança da arte trovadoresca medieval, levada de castelo em castelo e de cidade em cidade, com suas cantigas d’ amor, d’ amigo e de mal-dizer, como nos ensinou em suas aulas inesquecíveis a mestra Regina Dalva Michielin, no “Cesário Coimbra” em Araras.
Quando criança, em minha cidade natal , lembro-me de vivenciar no cotidiano esse sentimento.
Familiar jamais poderia pensar em hospedar-se em hotel. Tinha que ser acomodado em casa, afinal não era um andarilho, pois tinha família.
Se, quando morávamos na rua Barão de Arary, a mãe preparava um doce de abóbora com coco e canela em pau, de pronto passava um pratinho fumegando pelo muro para dona Elpidia, para dona Cidinha, para a professora Tere, para dona Adelia Petrucci. E o prato voltava depois, coberto com uma toalhinha delicada, retribuindo com outras guloseimas que esperávamos ansiosos por descobrir e degustar.
Era uma geração com pouca escolaridade formal. Meus pais só cursariam a faculdade muito mais tarde.Meu avô paterno era uma exceção, pois concluiu a Escola Normal de Pirassununga em 1919.
Meu avô materno, um sábio e um cavalheiro, estudou até o quinto ano na Itália. Minha avó, leitora ávida de jornais e debatedora de política, até o quarto.
Um tio meu era dentista. Os demais, isso quando conseguiram, cursaram a faculdade quando já eram pais de família.
Mulheres raramente estudavam ou trabalhavam fora.
Nos mais de 800 registros de imigrantes italianos para Araras, entre 1930 e 1980, somente sete mulheres escapavam da profissão: do lar. Uma era freira, uma enfermeira, as demais professoras.Era uma geração que não tinha acesso fácil à instrução formal, aquela onde a escola permite a aquisição de conhecimentos acadêmicos e o desenvolvimento de habilidades e hábitos na pessoa que os adquire. Mas era uma geração educada. Vamos lá: É por meio da instrução, que se propicia ao indivíduo a capacidade de realizar um tipo específico de trabalho, que se capacita progressivamente ao exercício das profissões mais sofisticadas.
Assim, o indivíduo, ao se instruir, vai incorporando, paulatinamente, cada uma das diferentes disciplinas do conhecimento humano, para seu uso profissional. Ou simplesmente para o deleite de ampliar sua cultura geral.
A educação é muito mais ampla e complexa. Consiste no desenvolvimento de sentimentos, convicções, vontade, caráter, consciência de valores e solidariedade, sem tolher o educando, porque respeita suas decisões a partir dos critérios, valores e particularidades de cada um.
Nos dias em que vivemos, onde a modernidade líquida relativizou valores, onde relações pessoais são substituídas por meras conexões via Twinder, onde as pessoas são avaliadas pelo que consomem, e não pelo que são, onde a conquista de bens obedece a uma escala móvel que mantém as pessoas em permanente angústia por alcançar bens de consumo inatingíveis, sobra instrução e falta educação.
Tornou- se comum nos deparamos com pessoas frágeis, melindrosas, iconoclastas, espertas – no pior sentido do termo, infantilizadas e egoístas.
Pais – e sobretudo mães – pouco instruídas, mas muito educadas, ensinavam a se contentar com o pouco que tínhamos, a valorizar cada pequena conquista, a venerar os professores e a respeitar os mais velhos, a jamais tocar em propriedade alheia, a devolver brinquedos que o amigo lhe desse na escola, a se comportar em festas infantis, a agradecer a dona da casa, mãe do amigo, no final da festa.
Ensinavam e exigiam que oferecêssemos o assento no banco do coletivo ou em qualquer espaço público para idosos, senhoras e gestantes, sem precisar de lei que nos compelisse. A lei era o olhar da mãe, ou de qualquer adulto presente.
Aprendíamos que era correto descobrir a cabeça, como sinal de respeito, quando se sentava para comer, ao entrar na igreja – qualquer igreja, ou quando passasse um féretro, mesmo que de um morto desconhecido.
A tirar uma menina para dançar, agradecer ao final e a ir à sua casa para pedir aos pais dela permissão para namorar, caso a conversa prosperasse.
A Escola pública era sagrada e tinha que se mantida limpa e protegida por todos. Autoridades públicas deviam ser respeitadas. Nunca ouvi meus pais ou avós falarem mal do prefeito, do juiz, dos vereadores, dos professores, do padre, do delegado, dos policiais, dos bombeiros ou do sargento do Tiro de Guerra. Muitos até que mereciam mas não se fazia comentário depreciativo de autoridades na presença das crianças.
Não me lembro de meus pais falarem comigo sobre presevativo, DIU ou tabelinha. Mas lembro que meus pais e meu avô diziam qie cada ser humano era um milagre em si próprio, um espermatozoide que venceu uma corrida frenética contra milhões de concorrentes, que fertilizou um óvulo, que se desenvolveu – com maior ou menor cuidado- na barriga de sua mãe, que veio ao mundo e teve de ser cuidado anos a fio, até adquirir autonomia.
E por isso todo ser humano era um universo em si próprio que merecia respeito, independentemente de gênero, cor, religião ou origem.e isso se aplicava também àqueles que meu avô chamava de ” o espelho da vida” , mostrando que nenhum de nós estava livre da sina de ser ébrio, louco, ir para um presidio ou vir a morar na rua.
Minha mãe, que era minha grande amiga e confidente, falava que eu estava entrando na puberdade. E minhas amigas também estavam. Ela resumia sua fala em dois topicos: respeite as mulheres como seres humanos que são e seja prudente, porque, se um dia eu engravidasse uma menina, eu seria responsável por ambos – inclusive pela mãe e sobtetudo pelo filho – enquanto eu vivesse.
O país, sem dúvida, avançou na instrução formal, a despeito da mercantilização do ensino.
Mas o pais, tristemente, se deseducou. Hoje somos obrigados a conviver com o barulho que não respeita a vizinhança, a grosseria nas letras de músicas, a falta de educação inclusive de pessoas materialmente bem sucedidas, a vergonha de querer ser erudito e a prevalência do grotesco e do vulgar sobre o bpm e o belo.
Sendo bem honesto, sinto saudades de um Brasil de pessoas simples mas educadas, que não se impunham pelos seus bens, pela marca de seu carro ou pela violencia, mas por sua dignidade e reputação, duramente construida ao longo de toda uma existência de bons exemplos. Lembrando que instruir é missão essencial da escola, e também dos pais. Mas educar, essa missão é indelegável de quem gerou.
Obs.: A diferença entre educar e instruir foi extraída de https://brainly.com.br/tarefa/9208961