Perdemos Elis Regina há 42 anos.
Era 27 de janeiro de 1982, uma terça-feira. Estúdios da Jovem Pan na Avenida Paulista, São Paulo. Já passava do meio-dia. No ar, o Jornal de Esportes.
No estúdio principal, os apresentadores Edemar Annuseck e Milton Neves divulgam as principais notícias do dia, que são comentadas por Orlando Duarte e José Silvério.
No setor de fronte ao estúdio, separado por vidros, Cândido Garcia conduz o programa, ao lado do operador da mesa de áudio. Na central técnica, também separada por vidros, eu, Sérgio Barbalho, mantenho contato com os repórteres Flávio Adauto, Wanderley Nogueira, Eduardo Savóia, Roberto Monteiro e João Bosco, que estão nos clubes, apurando informações ou preparando as entrevistas. Pelo comunicador interno, faço a ponte com o Cândido e cuido da coordenação, para que os repórteres sejam acionados no melhor momento.
De repente, essa rotina é quebrada.
O repórter Milton Parron, que circula pelas ruas da Capital em uma viatura da Jovem Pan, pede para ir ao ar com urgência. A notícia é chocante: morreu Elis Regina. Aviso ao Cândido imediatamente e o repórter entra no ar e dá trágica notícia.
A partir desse momento, tudo muda. O sempre ágil jornalismo da emissora, comandado pelo diretor Fernando Vieira de Mello e pelo chefe de redação José Carlos Pereira, assume o comando da programação, para que os ouvintes recebam a melhor informação sobre o desaparecimento de Elis. A morte da cantora provocou um choque nacional, assim que a notícia circulou pelo rádio e pela televisão.
Cheia de vitalidade nos seus 36 anos, Elis Regina de Carvalho Costa passou metade de sua vida em estúdios, distribuindo uma voz impecavelmente afinada por 27 LPs, 14 compactos simples e seis duplos, que venderam algo como quatro milhões de cópias, como informou a revista Veja daquela semana. “A qualidade do trabalho sempre foi tão boa que lhe assegurou uma das mais sólidas reputações da música popular brasileira. Sua morte, no apartamento que ocupava nos Jardins, em São Paulo, foi chorada com lágrimas e canções entoadas por 25 mil fãs, amigos e parentes que a visitaram no velório do Teatro Bandeirantes, palco de seu maior sucesso, o show ‘Falso Brilhante”, centro da Capital. Cerca de mil pessoas integraram o lento cortejo que atravessou a metade da capital paulista para sepultá-la no cemitério do Morumbi”, relatou a revista, há 42 anos.
Elis Regina, a maior cantora do Brasil. Para mim, para milhares de músicos e para uma multidão de brasileiros. E qual seria a opinião de João Marcello Bôscoli, produtor musical, irmão da cantora Maria Rita e filho do músico Ronaldo Bôscoli e de Elis? Seu artigo foi publicado no jornal O Estado de S. Paulo:
“POR QUE ELIS (NÃO) É A MAIOR CANTORA DO BRASIL”
Por João Marcello Bôscoli
“ Emoção, criatividade, capacidade de interpretação, resposta melódica, poder de síntese, dicção, afinação, dinâmica, senso rítmico, estético e organizacional fazem parte da essência de um indivíduo musical. Esses atributos e habilidades são sintomas de musicalidade e seus efeitos sobre os artistas são independentes, como em um transe ou sonho. De maneira incomum, Elis atinge em todos estes itens graus muito altos em qualquer avaliação. E não é razoável que alguém sozinho concentre tantos atributos.
Demanda uma quantidade muito grande de energia psíquica, derrete circuitos e gera um preço altíssimo no campo pessoal. Seria trágico em um ser humano comum, sem dúvida. Mas não em um ser humano-coletivo, capaz de captar o inconsciente da raça humana e o devolver para a sociedade sobre a forma de uma obra de arte pessoal e universal, dialogando, desafiando e restabelecendo mitos. Acima e profundamente ligada ao seu tempo, consciente às raias da loucura, dona de uma inteligência desconcertante e tomada por sua necessidade de cantar, Elis é um acidente genético, uma síntese de aptidões contraditórias. É aquilo que se convencionou chamar de gênio.
Certa vez, Bjork me disse que “não teria jamais coragem de ir emocionalmente até onde Elis ia; temia não conseguir voltar.” Poucas vezes vi definição tão precisa. Esse medo do inesperado, sentimento pai de clichês e fórmulas, era algo que Elis desconhecia. Alimentava-se do novo, precisava dele como combustível. Raríssimas vezes em shows cantou seus hits, normalmente utilizados por grande parte dos artistas como trincheiras, como um discurso pronto que impede a emergência da novidade. Ao contrário, garantia aplausos inaugurando sensações, compositores, cortes de cabelo, gírias, indumentárias e estéticas musicais, num processo artístico contínuo, humano ao máximo.
Era comum gravar discos, como Elis & Tom, em três dias – Falso Brilhante, com músicas como Fascinação e Como Nossos Pais, foi gravado em dois. Mais do que cantar, vivia a canção, transformando toda sua existência em música. O sucesso, efeito colateral da criação artística, era consequência amiga e nunca razão de ser. Talvez por isso guardasse seus troféus e discos de platina no canil e não tivesse em casa seus próprios álbuns. Fazer o próximo era o mais importante. Ser hipnotizada pelo espelho colocaria a decadência na sala, como ocorreu com Elvis Presley e Michael Jackson. Aliás, o lento suicídio dos reis começou exatamente quando deram as costas para a música, em nome de suas idiossincrasias e de algo que sempre foi extremamente pejorativo e virou, em tempos atuais, almejável: ser uma celebridade, essa versão contemporânea do bobo da corte – sem querer ofender o bobo da corte.
Já ouvi de uma pessoa do meio, aliás muito inteligente e próxima, que ela morreu quando achou que não teria mais como realizar um grande disco. Difícil concordar, difícil discordar.
Ganha sentido quando lembramos que a música se manifesta através do artista – e não o contrário. Tal qual uma entidade independente, toma-o para si, definindo-o. Rei Lear pariu Shakespeare, assim como o trompete criou Miles Davis – e não o contrário.
Desmentindo Carl Jung, era uma grande artista e uma pessoa de ótimo caráter. Grande amiga de seus amigos, do tipo que se soubesse de alguma dificuldade financeira depositava algum valor sem comunicar ou ia visitá-lo na prisão no auge da ditadura militar, ignorando qualquer risco maior. Adorava cuidar da casa, passando em algumas temporadas meses sem nenhum auxiliar. Fazia a faxina, as compras do mês, lavava, passava, levava os filhos às aulas e cozinhava, tirando muita vida, frescor e autoconfiança disso tudo. Sendo verdadeiramente uma estrela, era desnecessário emular ou seguir algum livro de regras do star-system. Como um Marlon Brando em cena, ela só precisava existir na vida para ser quem era. Elis Regina se garantia.
Sem planejar, foi a primeira artista brasileira a vender um milhão de cópias, foi apresentada ao País através da televisão, onde detém o maior recorde de audiência da história da TV brasileira e fabricou o primeiro disco independente no País, entre outros marcos. Se poucas pessoas sabem desses dados, deve-se ao fato de ela viver da realização e não da percepção alheia. Dizia ser impossível para si fazer qualquer coisa em função da expectativa dos outros. Anacrônico, afinal, vivemos tempos onde artistas (artistas?) fazem pesquisa com o consumidor (público de música agora virou consumidor) para tentar identificar tendências de mercado. Era só o que faltava: um artista me perguntando o que eu acho. O mínimo que espero é que faça o que acredita, o que sente, independentemente de qualquer opinião.
Em 1979, quando foi ovacionada durante uma turnê no Japão e em sua antológica apresentação no Festival de Montreux, na Suíça, descobrindo que seus ídolos jazzistas eram seus fãs, Elis chorou dizendo que sendo “filha de uma lavadeira e um operário desempregado, não sabia se merecia” tudo aquilo. Curiosamente, essa ex criança-prodígio, apesar de seus feitos, parecia não ter consciência plena de sua genialidade, depois de ter saído de Porto Alegre de ônibus com apenas uma mala e, sem conhecer ninguém, conseguir em poucos meses nas capitais paulista e carioca ser reconhecida como uma das melhores cantoras do país.
Embora tivesse grande capacidade de tradução emocional, há uma coisa impossível para Elis ou qualquer outro artista: representar todas as gamas de sentimentos. Não é possível para ela entregar os sentimentos que Carmem, Elizeth ou Bethânia entregam, por exemplo. Ou evocar o mesmo que Ella, Sarah ou Nina Simone. Isso é pessoal, intransferível e, claro, subjetivo – passa completamente pela ligação emocional que cada um tem ao ouvir determinada música. E ouvimos música por razões emocionais. Ponto. Muito pode ser dito e escrito em diversas abordagens – aspectos matemáticos, estética, sintaxe, questões apolíneas, dionisíacas -, mas o cerne é a emoção. Por isso creio que “a melhor cantora do Brasil” seja um cargo inexistente; está mais para uma panaceia. Há talvez a “melhor cantora de cada um”, dependendo do estado de espírito inclusive. Apesar de amar esportes, nunca acreditei na ideia de um ranking absoluto. São necessárias muitas vozes para representar todo o espectro de sentimentos existentes. “