Parece-me claro que o mundo, atualmente, vive um de seus piores momentos. Além dos problemas mundiais que se acumulam ao longo do tempo, como o aumento da desigualdade e a rápida deterioração das condições climáticas e do meio ambiente, a pandemia e os diversos conflitos militares que se sucedem e outros que “se armam”, ainda estamos contestando, e de forma muito mais veemente, a Democracia e o conjunto dos valores democráticos conquistados.
Consequentemente, passo a acreditar que os maiores riscos para toda a sociedade mundial, para este e os próximos anos, terão origens nos aspectos geopolíticos. Inevitavelmente, de forma negativa, o comércio mundial será afetado e as cadeias de suprimentos e/ou distribuição terão seus funcionamentos prejudicados. Ponto de atenção para todos e, em especial, para os profissionais de logística.
Vale lembrar, por exemplo, que eventos como aqueles que ocorrem no Mar Vermelho e no Canal do Panamá, além dos prejuízos decorrentes e da grande possibilidade de criar conflitos ainda maiores, traduzem-se em enormes preocupações para a logística em geral e o transporte marítimo em particular, com profundos e negativos impactos no comercio mundial.
Importante ressaltar o relatório “Geopolítica e geometria do comércio global”, elaborado por uma equipe especializada da McKinsey (Jeongmin Seong, Olívia Branco, Michael Birshan, Lola Woetzel, Camillo Lamanna, Jeffrey Condon e Tiago Devesa) e publicado dia 17 do mês que passou. Nele, ao se constatar que ainda haverá muitas mudanças nos padrões atuais do comércio global, será necessário que representantes do governo e profissionais e dirigentes empresariais estejam “conscientes dos diferentes caminhos a seguir”.
Em face da importância, reproduzo aqui alguns pontos observados no relatório:
- Uma nova reconfiguração comercial já vem se desenvolvendo nos últimos 10 anos, quando países como China, Alemanha, Reino Unido e Estados Unidos, ao buscarem parceiros ‘geopoliticamente alinhados’, “reduziram a distância geográfica do seu comércio” que, como se sabe, propicia o desenvolvimento de processos de “concentração comercial”;
- Por outro lado, e por mais paradoxal que possa parecer, economias ‘geopoliticamente distantes’ têm aumentado seus relacionamentos comerciais quando se trata da comercialização dos chamados “produtos concentrados”, como são os casos dos computadores portáteis e do minério de ferro, posto que 90% das exportações globais desses bens têm origem em apenas três ou quatro economias de todo o mundo;
- “Embora desde 2010 cerca de 60% dos investimentos tenham ido para as economias em desenvolvimento, o seu destino está mudando. Nos últimos dois anos, os maiores aumentos se deram na África e na Índia, enquanto investimentos previstos para a China e para a Rússia caíram “cerca de 70 e 98 por cento, respectivamente, em comparação com as médias pré-pandemia. Vale ressaltar que o comércio global da China em 2023 teve queda de 5,0% se comparado com 2022, quando teve aumento de 4,3%. Nesse período, as exportações chinesas caíram 4,6% (aumento de 6,9% no ano anterior) e as importações diminuíram 5,5%, contra 1,0% de crescimento em 2022;
- Diante de tantas incertezas, os setores empresariais precisarão adaptar suas organizações ao cenário previsto, vindo a ser fundamental que se desenvolva não só um conjunto de ações estratégicas empresariais, mas, também, um posicionamento com relação à geopolítica vigente.
O Brasil, sem dúvida, sofrerá os impactos que lhe correspondem e ainda terá que lidar com seus próprios problemas, inclusive o fato de que neste ano haverá eleições.
Entretanto, apesar de tudo e contra a vontade de muitos, o País já se apresenta como um lugar confiável e de oportunidades. A estabilidade política e a independência dos poderes estabelecidos, a manutenção do Estado Democrático de Direito, a própria independência do Banco Central, as reformas da Previdência e Tributária, políticas claras de combate ao desmatamento e de proteção ao meio ambiente, a melhoria de desempenho de alguns dos principais índices econômicos (crescimento do PIB, aumento do consumo, controle da inflação e queda de juros) e ambiente de maior previsibilidade, incluindo-se, aqui, os programas para retomada do desenvolvimento do setor industrial e outros que buscam manter os demais setores da economia em evolução e crescimento, são fatos que ajudam ainda mais a imagem do Brasil.
A se considerar, inclusive, os investimentos previstos no PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) que, além de tudo, contempla cinco rotas específicas para melhoria do processo de integração regional latino-americano: a) Rota da Ilha das Guianas (Amapá, Roraima, Pará); b) Rota Multimodal Manta-Manaus (Roraima, Pará, Amapá); c) Rota Quadrante Rondon (Acre, Rondônia, Mato Grosso); d) Rota Capricórnio (Corredor Bioceânico de Capricórnio); e) Rota Porto Alegre-Coquimbo (Rio Grande do Sul).
Importante: o Corredor Bioceânico de Capricórnio, que possibilita a realização do transporte internacional entre a América do Sul e os países da Ásia via Oceano Pacífico, evita que se utilizassem os trajetos via sul da África ou Canal do Panamá. Lembrete: 50% das exportações brasileiras já são direcionadas para a Ásia, em especial a China.
Como se vê, e sem dúvida, providências que deverão aumentar a abrangência e melhorar o funcionamento e o processo de integração dos países sul-americanos, possibilitando que regiões razoavelmente isoladas do comércio internacional sejam incorporadas ao mercado. Vale lembrar, aumentando o protagonismo brasileiro junto aos países da América Latina.
Com relação ao meio ambiente e à sustentabilidade é importante ressaltar que o Brasil, talvez um dos poucos do mundo, além de produzir energia renovável em quantidades maiores do que sua necessidade, ainda poderá, segundo os especialistas, ter um adicional equivalente a duas ou três vezes aquilo que exige o consumo interno atual, assim que forem concretizados os projetos eólicos e solares em andamento. O País poderá, sem dúvida, bem antes do ano 2050, alcançar a meta estabelecida pelo Acordo de Paris, de “zerar” suas emissões de CO2. Mas será preciso trabalhar! E muito!
Não à toa o Brasil, que já retomou sua posição entre as dez maiores economias do mundo, melhorou suas classificações de crédito junto à S&P e Fitch, e é o quinto maior recebedor de investimentos estrangeiros diretos, ficando atrás, segundo dados da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento – UNCTAD, somente dos Estados Unidos, China, Singapura e Hong Kong. Não é pouco, embora muito ainda tenha que ser feito.
Mais particularmente, quando se discutem assuntos relativos à logística, além de se constatar a necessidade de maiores investimentos, seja para a expansão ou a melhoria da infraestrutura ou para fazer frente aos problemas climáticos, outro assunto relevante, mas que deve ser tratado sem ‘modismos’, é quanto ao uso de tecnologias envolvendo inteligência artificial. Veículos autônomos, veículos elétricos com maior eficiência e autonomia, drones e robôs de entregas ou que realizam a transferência automática de cargas para outros veículos, linhas de produção ou armazéns, inclusão de diversos tipos de sensores, tanto para a captação de dados operacionais em tempo real como para maior e mais rápida identificação de problemas operacionais que se apresentam, bem como a consequente ativação de providências pertinentes, são apenas alguns exemplos. A complexidade da logística aumentou.
Mas essa complexidade não se limita aos problemas tecnológicos ou relacionados à movimentação de mercadorias propriamente dita (otimização de cargas e/ou equipamentos, identificação de possíveis sinergias, etc.), mas também aos problemas derivados da falta de visibilidade e de informações mais fidedignas e em tempo real, bem como de sistemas de comunicação que permitam uma administração em tempo real. Se antes o objetivo era apenas obter a localização das mercadorias em movimento (rastreabilidade exigida pelos consumidores ou pelas seguradoras), agora, além de se buscar dados e informações em uma quantidade muito maior de fontes, é preciso incorporar, também de forma rápida e ágil, muito mais conhecimento, único meio para que se consiga maior visibilidade e controle das operações e dos negócios.
No relatório de Janeiro de 2024, elaborado pelo World Economic Forum (“The Global Cooperation Barometer 2024”), e colaboração da McKinsey, fica claro a necessidade de se buscar um “futuro mais cooperativo” entre líderes dos setores público e privado, de tal forma que haja mais resiliencia empresarial e maior proteção aos interesses correspondentes (1).
Diante desse posicionamento, defende-se que todas as empresas, em especial as maiores e as multinacionais, que como todos serão impactadas pelas mudanças mundiais, incluindo-se aí a geopolítica, com correspondentes alterações nos fluxos comerciais e nas composições das cadeias de abastecimento e distribuição, precisam cooperar entre si, de forma a melhor compreender essa nova realidade e suas implicações nos negócios. E isso, ainda segundo o relatório, não significa “apenas entender as manchetes, mas ter uma compreensão sutil das nuances, contexto e potenciais implicações para o negócio”. Somente assim será possível elaborar um conjunto de cenários realistas – e prováveis – que incluam alternativas e novas opções estratégicas que levam em conta as mudanças geopolíticas e a nova dinâmica mundial.
É fato que a tomada de decisões, operacionais e estratégicas, somente se dará da forma rápida, correta e mais bem adaptada ao momento e às exigências e necessidades dos “stackholders”, quando for possível melhorar os níveis de conhecimento, caminho para que se aumente a compreensão deste mundo cheio de incertezas. É o jeito de se construir cenários futuros mais realistas e possíveis.
(1) Os 5 pilares da cooperação global do Barómetro da Cooperação Global
- a) Comércio e Capital. Promover o desenvolvimento e a resiliência globais. Focos da análise: i) desenvolvimento e resultados resilientes; por meio ii) presença de fluxos econômicos globais que promovam oportunidades para esses resultados;
- b) Inovação e Tecnologia. Acelerar a inovação e os benefícios do progresso tecnológico. Focos da análise: i) progresso global em inovação e tecnologia; por meio ii) presença do compartilhamento global de conhecimento e promoção de colaboração entre talentos globais
- c) Clima e Capital Natural. Apoiar na resolução dos desafios climáticos e da natureza. Focos de análise: i) redução das emissões, preservação do capital natural e preparação para o impacto provável das mudanças climáticas; por meio de ii) objetivos/compromissos globais compartilhados que aumentem a capacidade da humanidade para limitar e se adaptar à dinâmica de um clima em mudança;
- d) Saúde e Bem-estar. Permitir que a população global tenha vidas mais longas e melhores. Focos da análise: i) impacto da carga de doença sobre a duração e a qualidade de vida; por meio de ii) compromisso com o público global e os padrões de saúde, e colaboração por meio de fluxos de bens, P&D, IA e financiamento da saúde;
e) Paz e Segurança. Prevenir e resolver conflitos. Focos: i) evitar mortes e suas implicações negativas de longo prazo; através do ii) compromisso com operações multilaterais de manutenção da paz e esforços internacionais de estabilização.
Paulo Roberto Guedes
Formado em ciências econômicas (Universidade Brás Cubas de Mogi das Cruzes) e mestre em administração de empresas (Escola de Administração de Empresas de São Paulo/FGV). Professor de logística em cursos de pós-graduação na FIA (Fundação Instituto de Administração), ENS (Escola Nacional de Seguros) e FIPECAFI (Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras). Membro do Conselho Consultivo da ABOL – Associação Brasileira de Operadores Logísticos, da qual também foi fundador. Membro do Conselho de Administração da ANHUMAS Corretora de Seguros. Diretor de Logística do CIST – Clube Internacional de Seguro de Transporte. Consultor Associado do escritório de Nelson Faria Advogados. Consultor empresarial e palestrante nas áreas de planejamento estratégico, economia e logística. Articulista de diversas revistas e sites, tem mais de 180 artigos publicados. Exerceu cargos de direção em diversas empresas (Veloce Logística, Armazéns Gerais Columbia, Tegma Logística Automotiva, Ryder do Brasil e Cia. Transportadora e Comercial Translor) e em associações dos setores de logística e de transporte (ABOL – Assoc. Brasileira de Operadores Logísticos, NTC&L – Assoc. Nacional do Transporte de Cargas e Logística, ANTV – Assoc. Nacional dos Transportadores de Veículos, ABTI – Assoc. Brasileira de Transp. Internacional e COMTRIM – Comissão de Transporte Internacional da NTC&L). Exerceu cargos de consultoria e aconselhamento em instituição de ensino e pesquisa (Celog-Centro de Excelência em Logística da FGV), de empresas do setor logístico (Veloce, Columbia Logística, Columbia Trading, Eadi Salvador, Consórcio ZFM Resende, Ryder e Translor) e de instituição portuária (CAP-Conselho de Autoridade Portuária dos Portos de Vitória e Barra do Riacho do Espírito Santo). Lecionou em cursos de pós-graduação na área de Logística Empresarial na EAESP/FGV (Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas) e em cursos de graduação de economia e administração de empresas em diversas faculdades (FAAP-Fundação Armando Álvares Penteado, Universidade Santana, Faculdades Ibero Americana e Universidade Brás Cubas). Por serviços prestados à classe dos Economistas, agraciado com a Medalha Ministro Celso Furtado, outorgada pelo Conselho Regional de Economia de São Paulo.