Alguns afirmam que a política (na verdade, a sua degradação: a politicagem) está cada dia pior, contaminada pelos interesses menores (individuais), pela corrupção (financeira e de valores) e pela dissimulação (discursos e atitudes falsas). Com certeza, esses têm razão.
As “redes sociais”, entendidos o facebook e seus desmembramentos, são os causadores desse frenético e desastroso avanço. Mas não é justo culpar Mark Zuckerberg pelos maus usos posteriores da sua invenção, pois infelizmente os seres humanos desvirtuam quase tudo. Dizem que a mesma decepção tiveram Albert Einstein quando sua teoria foi usada para construir a bomba atômica e Santos Dumont quando sua invenção foi usada para jogar bombas do alto, nos inimigos…
Existem cláusulas “pétreas” impostas pelo direito natural, que deveriam ser respeitadas e cumpridas, visando as tão decantadas paz e justiça social. Mas que infelizmente o “livre arbítrio” humano sempre posterga ou encontra pretextos (narrativas) para não incorporá-las. Por exemplo, o direito à vida (não matar um semelhante, nem mesmo ainda um embrião). Sob outra ótica, essas cláusulas significam amar (efetivamente) o próximo, tratá-lo exatamente como gostaríamos de sermos tratados.
Há uma passagem curiosa no velho testamento, em Gênesis 18:20-32. Deus contou a Abraão que pretendia destruir Sodoma e Gomorra em razão dos graves pecados e abominações que lá estavam acontecendo, de forma sistêmica. Abraão se compadeceu pelos homens bons que lá existissem, e intercedeu perguntando se Deus pouparia as cidades em razão desses. Deus respondeu que sim, se fossem contados pelo menos 10. Mas foi encontrada somente 1 família boa: Ló, sua esposa e filhas. Assim, Deus destruiu as duas cidades, mas antes permitiu que essa família se retirasse. Esse texto demonstra que a tendência das sociedades, se as cláusulas “pétreas” não prevalecerem, é a degeneração (entropia) e seu desaparecimento.
Diretamente ao tema: todos acreditam que a melhor definição para “democracia” é: governo do povo, pelo povo e para o povo. Mas… como aferir isso, na percepção desse “povo” ? Eleições bastam ? Distribuição de benesses, pão e circo permanentes ? Laissez-faire generalizado, ignorando ou abolindo quaisquer regras, a começar pelas cláusulas “pétreas” ? Poderá uma sociedade perdurar assim ?
Como pode esse povo, “dono” da democracia, aceitar ou protestar contra as interpretações e atitudes danosas daqueles que governam “para” ele ?
Infelizmente há (muitos) governantes que, estando no pódio, passam a se considerar “tutores” do povo, com boa ou má fé, exorbitando em seus poderes.
Montesquieu tentou evitar esses abusos dividindo o Poder maior em três compartimentos, com freios e contrapesos entre Legislativo, Executivo e Judiciário. Mas não previu remédio para a possibilidade, na escalada da corrupção e das falsidades, dos três se aliarem contra o povo… É a realidade atual.
Nos países realmente democráticos, além de eleições periódicas (e honestas), acontecem frequentes plebiscitos para evitar essa irresponsável e tendenciosa tutela. No Brasil, os plebiscitos quase não acontecem, pois os tutores anteveem os resultados e não querem que nada mude…
Esse comportamento nos faz um dos países mais caros (impostos cada vez maiores) e menos representativos (desconfiança do povo nos seus “representantes”) do mundo.
Ainda temos eleições periódicas, embora existam fundadas suspeitas de fraudes.
Ainda temos partidos, embora cada vez menos coerentes, menos “programáticos” e cada vez mais corruptos.
Bons cidadãos (tal como Ló) são eleitos, mas logo depois da posse percebem onde caíram e enfrentam o enigma da esfinge: “decifra-me (seja corrupto como eu) ou te devoro”.
O voto no Brasil é obrigatório (fazendo parte da tutela) e o povo é habituado a votar, mas votar em “qualquer um”, já que em sua visão, nenhum candidato presta. E tudo continua como antes, no quartel de Abrantes…
Para a minoria dos cidadãos livres e de bons costumes, apegados a valores (cláusulas pétreas do direito natural), dotados de discernimento e do sonho de um futuro melhor, surge como (única) forma de protestar contra esse status devastador: votar em branco ou anular o voto. Mas o Poder corrompido tem medo de que isso cresça e cause uma “revolução” cívica, mesmo que pacífica e legítima.
Vamos analisar a seguir, para concluir que sim, o voto em branco ou nulo são válidos e são a única “arma” nas mãos do eleitor para salvar este país (antes que Deus se canse de procurar pelo menos 10 políticos sérios), diante das insidiosas circunstâncias.
Válidos, mas não imediatamente.
A legislação em vigor, desde a Constituição e chegando nas leis eleitorais, estabelece que, após cada data de sufrágio, computados todos os votos populares, são considerados eleitos os candidatos mais votados (majoritária ou proporcionalmente), “depois que tiverem sido excluídos os votos em branco e os nulos”, adotando que essas opções (branco ou nulo) não são “válidas” para eleger alguém.
Com isso, as atitudes populares de “abstenção” (não aparecer na seção eleitoral), votar “em branco” (botão apropriado na máquina) e anular o ato (digitando um número inexistente), acabam tendo o mesmo efeito.
Existe um antigo “fake” afirmando que, se houver mais do que a metade de eleitores com votos “não-válidos”, a eleição de todos será anulada. Isso nunca aconteceu e nunca vai acontecer, mesmo que 90% dos votos (ou mais), em determinado sufrágio, sejam desclassificados. Nessa hipótese, simplesmente cai o “quociente eleitoral” (soma dos votos “válidos”) e os 10% que sobraram, elegem os “representantes” (e todos, tutores e tutelados, ignorarão a falência do processo cívico e fingirão que está tudo bem no quartel de Abrantes).
Mas o louvável exegeta pode intervir neste momento: como fica o disposto no artigo 224 do código eleitoral (lei federal 4.737/65, ainda vigente), que prevê expressamente a realização de um novo pleito, quanto os votos “invalidados pelo poder judiciário” corresponderem a mais da metade do total de votos ? A explicação é que voto “anulado” pela justiça eleitoral (caso de crimes eleitorais cometidos por candidatos) não é voto “nulo” (ato individual de não votar, nem mesmo em branco).
O mesmo código ainda estabelece uma outra hipótese de anulação do pleito, no artigo 222: quando ficar comprovado que o processo eleitoral foi viciado por fraudes (entre outros tipos de gravíssimos crimes, lesa-pátria ou lesa-democracia), por exemplo: ter sido violado em favor de um dos candidatos, o código-fonte e o algoritmo do sistema eletrônico de contagem de votos. Felizmente, no Brasil, existe uma extraordinária fiscalização cruzada entre o tribunal eleitoral e o exército (artigo 142 da CF), sempre atentos a abusos eventualmente cometidos pelas empresas prestadoras terceirizadas… (ainda bem !).
Isso tudo posto, vamos à resposta demandada no título desta modesta dissertação:
O VOTO NULO É VÁLIDO ?
Sob o ponto de vista legal e dos efeitos imediatos dessa atitude, mesmo que tomada por 99,99 % dos eleitores credenciados, a forçosa resposta é que não, votar nulo (bem como votar em branco, ou se abster de votar) nada acarreta, nem mesmo a indignação da “imprensa” ou do povo em geral.
Mas a extrema minoria das pessoas cultas, conscientes e civicamente corajosas, capazes de entender a perversidade do “sistema”, num ilógico senso comum, está “causando”: nas estatísticas do próprio TSE, vem aumentando sensivelmente a porcentagem dos eleitores que comparecem às urnas mas votam em branco ou anulam o seu voto. Em 2006 foram 4%, em 2010 foram 5%, em 2014 foram 6% e em 2018 foram impressionantes 10 %.
Diante desse fenômeno, explicado apenas por aquelas “cláusulas pétreas” de direito natural que persistem no inconsciente humano, existe uma esperança.
Mesmo que muitas eleições ainda sejam feitas, validando mandatos sem crédito (e nem crença) popular, e sem os resultados efetivamente democráticos (direito do povo que “manda” nos governos), está sendo válido sim o ato de anular o voto, como meio de protesto.
É uma forma de “legítima desobediência civil” pregada por Gandhi e por outras grandiosas personalidades que marcaram a história da civilização.
///
José Crespo foi deputado estadual na ALESP durante três mandatos consecutivos e atualmente é presidente do ICPP – Instituto de Cidadania e Políticas Públicas