A Carta Maior brasileira conferiu ao tema da publicidade o status de princípio constitucional, conforme expressa o artigo 37, que traduz a essência da transparência esperada dos agentes públicos como regra, sendo a hipótese de sigilo absolutamente excepcional. É verdade que a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) agora faz parte de nosso ordenamento jurídico da mesma forma, mas é vital compatibilizar sua essência e razão de ser com a publicidade constitucional, inabalada diante do surgimento de tal nova regra.
É inadmissível que um deputado federal, um senador ou qualquer agente público se esconda atrás da LGPD, deixando de cumprir seu dever de prestar contas e de ser absolutamente transparente, não tendo sido desobrigados pelo mesmo diploma. Inclusive, no que diz respeito à obrigatória declaração de bens para que a sociedade possa exercer sua fiscalização cidadã. Se o congressista se sente incomodado diante do monitoramento constante da sociedade civil, deve renunciar ao mandato, pois a accountability é inerente à sua condição de representante da população exercida perante o Poder Legislativo, não podendo ninguém se eximir.
O presidente Lula, durante a campanha, foi um crítico recorrente dos sigilos decretados por seu antecessor, Jair Bolsonaro, o que deu a entender a suposta ênfase na defesa da relevância da transparência. Ou seja, alertou sobre a importância do respeito à LAI (Lei de Acesso à Informação) e ao princípio da transparência, mas, ao reconquistar o poder, agiu em desacordo com sua própria pregação. É a velha história: faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço.
A LAI completou, neste ano, 12 anos em vigor e representa um instrumento jurídico fundamental para garantir a transparência pública. Nos termos da lei, o segredo ou sigilo só pode existir em situações excepcionais, relacionadas à segurança ou soberania nacional, quando houver risco à condução ou às negociações internacionais. Justifica-se ainda para evitar risco à vida, à segurança ou à saúde da população, assim como riscos à estabilidade financeira, econômica ou monetária do país. A legislação também flexibiliza a necessidade da publicidade se esta prejudicar ou causar risco a planos ou operações estratégicas das Forças Armadas, abrangendo também projetos de pesquisa e desenvolvimento científico ou tecnológico, ou a sistemas, bens, instalações ou áreas de interesse estratégico nacional.
Em maio, Lula assinou decretos que fizeram alterações no texto, especialmente um que previa ocultar dados pessoais de alguns documentos. Nesses casos, as demais informações seriam divulgadas. Um documento que avalia a possível existência de conflito de interesse na ocupação do cargo de ministro por Alexandre Silveira (Minas e Energia) teve o sigilo imposto pelo governo Lula pelo extenso período de 100 anos. O documento é uma exigência entregue ao Palácio do Planalto e visa informar se há parentes de até 3º grau no exercício de atividades que resultem em incompatibilidade com o cargo de ministro. O termo tem o nome de DCI (Declaração de Conflito de Interesses). Encaminhada pelo ministro, a CMRI (Comissão Mista de Reavaliação de Informações) analisou o documento e argumentou haver necessidade de proteção ao sigilo fiscal. Ou seja, assim como no governo anterior, verificamos o uso abusivo da decretação de sigilo centenário. A estratégia é uma tentativa de usar o manto da segurança nacional para ocultar dos olhos da população fatos corriqueiros da administração pública federal.
É verdade que os contextos são um pouco distintos, mas o documento objeto da decretação não se apresenta passível de segredo. Assim como este, tantos outros também tiveram sigilos impostos, como a agenda oficial da primeira-dama Janja e a lista dos militares do Batalhão de Guarda Presidencial que estavam em serviço no dia 8 de janeiro. Além dos sigilos, o atual governo negou, ao todo, 1.339 solicitações de informações com base na LAI em 2023.
Com um conceito bastante sintético, claro, direto, objetivo e sensato, o filósofo italiano Norberto Bobbio destacou o caráter eminentemente público do exercício do poder nos regimes democráticos, associado à ideia da transparência e ao dever de prestar contas inerentes a essa condição: “Democracia nada mais é que o exercício do Poder Público em público.”
Fonte: Poder 360
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