Home / Tragédia / A civilização e os limites da força – por Rubens Figueiredo

A civilização e os limites da força – por Rubens Figueiredo

A reflexão de Rubens Figueiredo sobre a operação policial contra o tráfico no Rio: deve ser entendido menos como um episódio isolado e mais como sinal de uma disputa sobre o monopólio da força

A recente operação policial no Rio de Janeiro recolocou uma questão importante que merece nossa reflexão: qual é o limite da ação estatal quando grupos armados controlam territórios, impõem regras próprias e exercem violência organizada? Antes de entrar na discussão se foi chacina ou se “bandido bom é bandido morto”, vale recuperar o que a teoria política diz sobre o histórico de nosso processo de organização da sociedade.

O ponto de partida é a própria viabilidade da vida coletiva. Thomas Hobbes descreveu o chamado estado de natureza como um cenário de insegurança generalizada, no qual ninguém dispõe de garantias e cada um se vê em perigo permanente e como potencial adversário do outro. “O homem é o lobo do homem”, dizia. Sem uma autoridade comum, conflitos tendem a se perpetuar e a convivência se torna precária, senão inviável.

Esse diagnóstico ganha fundamento psicológico na obra de Sigmund Freud. Em O Mal-Estar na Civilização, ele sustenta que a agressividade integra a vida psíquica; não é mero produto do contexto. Vivemos uma luta constante entre o princípio do prazer e o princípio da realidade. Viver em sociedade implica reprimir impulsos – sexuais, agressivos –, cuja livre expressão reproduziria precisamente o quadro de instabilidade descrito por Hobbes.

Dado que a violência não desaparece pelo convívio entre os seres humanos, alguém deve administrá-la. Max Weber oferece a definição moderna: o Estado é a instituição que reivindica o monopólio legítimo da violência. A força é centralizada e submetida a regras. O problema começa quando outros atores — facções, milícias — passam a exercer, de fato, funções concorrentes: cobram “tributos”, regulam condutas, punem desvios. Nesses bolsões do crime, o monopólio estatal é colocado em xeque.

Mas o que significa legitimidade? Weber fala de três tipos de legitimidade: tradicional (monarquias), carismática e racional-legal. Mas é Jean-Jacques Rousseau quem formula de forma mais sofisticada a tese da passagem do estado da natureza à sociedade estável. Trata-se de um pacto: cada indivíduo cede parte da liberdade em troca de proteção e pertencimento a um corpo político. O exercício da força estatal torna-se legítimo quando reconhecido como expressão desse acordo.

Se o Estado concentra a força e pode exercer a violência para preservar o desejo das pessoas em conviverem sob regras, precisa de limites. Montesquieu propõe a contenção “por dentro”, ou seja, separação de poderes e controles recíprocos, para evitar a concentração e abuso de autoridade. Alexis de Tocqueville acrescenta o limite “por fora”: sociedade civil ativa, imprensa, associações e participação local representam freios sociais à expansão do aparato estatal.

Esse arranjo — força centralizada e poder limitado — funciona enquanto o pacto é reconhecido por todos. Quando grupos armados rejeitam o pacto, erigem normas próprias e controlam territórios, a normalidade institucional entra em perigo. É o terreno do conceito mais desconfortável de nossa tradição democrática: o estado de exceção, formulado por Carl Schmitt. Para ele, o soberano é quem decide quando as regras ordinárias deixam de ser suficientes para preservar a própria ordem que lhes dá sentido. Em casos extremos, os aspectos, digamos, formais da legitimidade – como a legalidade – podem ser temporariamente flexibilizados para reconstituir as condições de sua aplicação.

Esse argumento explica a tentação de medidas extraordinárias diante do crime organizado e localizado. Mas ele exige cautela: exceções prolongadas tendem a corroer garantias e a deslocar o centro de gravidade do regime para a arbitrariedade. Era uma das preocupações de Hannah Arendt: sem limites, o Estado de exceção descamba para o autoritarismo.

A operação no Rio deveria ser lida menos como episódio policial isolado e mais como sinal de uma disputa sobre o monopólio da força. De um lado, a necessidade de impedir a multiplicação de soberanias locais; de outro, a obrigação de conter o próprio Estado pelos seus freios internos e pelo controle social.

A síntese possível é conhecida, mas precisa ser reiterada: sem Estado, avança o conflito e a credibilidade no poder público decresce; sem limites ao Estado, avança o arbítrio. A civilização é justamente o esforço contínuo de administrar a violência e limitar quem a administra.

Marcado:

Deixe um Comentário