Depois de aprovada na Câmara e no Senado na base do atropelo, em que deputados e Senadores, em sua grande maioria não sabia, e muitos inda não sabem, o que estavam votando foi aprovada a EC 132/24 que incluiu na Constituição um extenso capítulo sobre a tributação do consumo e, agora vai discutir a Lei Complementar 68/24 que regulamenta a EC.
A LC 68 é um trabalho bastante denso (247 páginas, 499 artigos e 17 Tabelas), coerente com as posições dos autores, mas muito longe da proposta inicial da PEC 45/19, e da realidade.
Ao contrário do que pensam muitos, e outros continuam afirmando, as novidades introduzidas no texto, não são baseadas na experiência internacional e, em alguns casos, até a contrariam.
É preciso ressaltar que não existe uma experiência no mundo em que se basear, pois a sistema tripartite da Federação brasileira, como clausula pétrea da Constituição, não tem similar.
A solução encontrada foi a de “contornar” a autonomia tributária dos três entes, que impediu, até agora, qualquer proposta de unificação dos tributos das diferentes esferas federativas.
Foram criados a CBS e o IBS, unindo um imposto estadual, com um municipal, como se isso não ferisse a autonomia dos estados e municípios.
Esse casuísmo, que poderá gerar insegurança jurídica é a primeira inovação que nada tem a ver com a experiência internacional.
Como casuísmo gera casuísmo, foi preciso fazer outra inovação, a criação do Conselho Gestor.
Esse órgão, sem paralelo no mundo, que, provavelmente se tornará um fim em si mesmo, como ocorre com a maioria dos órgãos burocráticos, pois dispõe de tantos poderes, atualmente exercidos por 27 governadores e 5.570 prefeitos, suas estruturas burocráticas, complementados e fiscalizados pelos respectivos legislativos, 1060 deputados estaduais e cerca 55,7 mil vereadores, todos eleitos por suas populações, como se isso não ferisse a autonomia desses entes federativos.
A complexa estrutura gera um sistema extremamente complexo de arrecadação, com passeio dos recursos para Brasília, para depois retornar a seus legítimos donos, após pagar um pedágio difícil de se estimar, mas que tende a ser crescente.
Como dizia Orwell, “todos são iguais, mas alguns são mais iguais”, a União não se subordina ao Conselho Gestor e administrará o CBS por intermédio da SRF. Essa dualidade, inicialmente não prevista, poderá futuramente resultar em divergências futuras entre os dois tributos.
Não bastassem essas “inovações” que não têm precedentes, preocupa ainda as “novidades novas” introduzidas no texto, pois, ao invés de se basearem na experiência internacional, contrariam as evidências dos estudos apresentadas no Relatório da OCDE de 2022.
Essa é uma experiência inédita para quem conheça como funciona o mercado e o mecanismo dos preços, pode assegurar qual será o resultado para a economia, inclusive para os empregos, uma vez que haverá oneração dos serviços, principal empregador.
Com o grau de detalhamento do texto constitucional, que colocou a Constituição brasileira entre as mais extensas do mundo, e com a quantidade de “penduricalhos” introduzidas pelo Congresso, tornou muito difícil a elaboração das Leis Complementares.
Existem vários pontos ainda não muito claros e passíveis de discussões, mas merecem destaques as novidades referentes à sistemática de cobrança dos tributos.
Entre essas novidades, destacam-se o “Split Payment”, a auto liquidação das operações, a tributação das operações financeiras e’ de seguros, e o “CashBack”.
O Split Payment é utilizado em alguns países para produtos ou situações específicas, nunca de forma generalizada, por seus inconvenientes apontados em estudo da Delloite de 2017 para a OCDE, conforme texto a seguir:
A análise realizada ilustrou os potenciais benefícios, bem como os desafios significativos relacionados com a utilização do split payment como método alternativo de cobrança do IVA. Embora o split payment tenha um elevado potencial para reduzir o déficit do IVA (especialmente a fraude e o incumprimento do MTIC), se aplicado de forma ampla em toda a UE, o seu custo, devido ao aumento da complexidade do sistema do IVA, os elevados encargos administrativos e o impacto significativo no fluxo de caixa das empresas, pode facilmente superar os benefícios. Portanto, é provável que a ampla aplicação do split payment seja uma ferramenta de política pouco atraente, dado o aumento significativo dos custos para empresas e autoridades. No entanto, possui características muito eficazes na redução de certos tipos de fraude e, portanto, “pode ser adequada como medida direcionada e de alcance limitado”
A outra inovação na proposta, apresentada como alternativa, é a “auto liquidação”, isto é, ao invés de ser cobrado do fornecedor, como atualmente com base em débitos e créditos de um determinado período, o IVA passará a ser cobrado do comprador, em cada operação.
Também essa inovação não é utilizada de forma geral por nenhum país do Bloco, mas apenas em casos específicos, como se constata no. Relatório da OCDE de 2022.
“Os países da OCDE que utilizam o mecanismo interno de auto liquidação limitaram normalmente a sua aplicação a setores económicos particularmente vulneráveis a esquemas de fraude organizados. Nenhum país da OCDE aplica um regime de auto liquidação mais generalizado para a cobrança de todo o IVA sobre as transações nacionais entre empresas. Embora tal sistema reduza os riscos de tipos de fraude específicos, tal como acima descrito, criaria, também, nova complexidade para as empresas e as administrações fiscais e riscos crescentes de outros tipos de fraude a nível varejista (por exemplo, supressão de vendas, utilização abusiva de números de identificação IVA). Uma preocupação é que transformeefetivamente o IVA num imposto sobre as vendas ao consumo, com a concentração de todos os riscos de receitas na fase da venda final ou num número limitado de pontos, com as insuficiências inerentes a esse sistema”.
Além desses dois pontos apontados no Relatório da OCDE de 2022 como inconvenientes para uso generalizado, ainda se prevê a possibilidade de condicionar o aproveitamento do crédito, à comprovação do pagamento da operação anterior. “Ronald Reagan dizia que o contribuinte era o cidadão que trabalhava para o governo sem fazer concurso”. Por aqui querem que ele seja também fiscal, embora um dos problemas da criação do Conselho Gestor seja a superposição de fiscalização entre os entes federativos.
O terceiro ponto que contraria a experiência internacional, conforme o já citado Relatório da OCDE é a tributação dos “serviços financeiros”.
Conforme o Relatório, “A isenção de IVA dos serviços financeiros, em particular, é objeto de debate frequente entre jurisdições, como mais recentemente na UE. Num documento recente (GFV N°087 de março de 2019), a Comissão Europeia lembrou que as regras de isenção de IVA da União Europeia para serviços financeiros e de seguros não acompanharam a evolução nestes setores, o que torna estas regras cada vez mais complexas e difíceis de aplicar na prática. Isto levou ao aumento das taxas de litígio, à incerteza jurídica e a elevados custos administrativos e regulamentares. Estas regras também são interpretadas e aplicadas de forma inconsistente entre os Estados-Membros, conduzindo a distorções da concorrência na UE. A Comissão Europeia lançou, portanto, uma consulta pública em fevereiro de 2021, cujo resultado foi publicado em setembro de 2021 (Comissão Europeia, 2021). As conclusões desta consulta mostram que, embora a grande maioria dos inquiridos considere que a isenção do IVA ainda é necessária, há necessidade de clarificação e de maior harmonização em toda a UE.
O surgimento de “fintech” e de novos produtos e serviços, como moedas virtuais e outros criptoativos, levanta novas questões para os regimes de IVA, nomeadamente à luz das regras existentes para o tratamento do IVA dos serviços financeiros (OCDE/G20, 2020) ”.
Observe-se que a preocupação com esses sistemas decorre apenas de uma visão do ponto de vista do fisco, ignorando as dificuldades burocráticas e de capital de giro das empresas.
Quanto à “inovação” do CashBack, revela a preocupação dos autores em não ampliar a Cesta Básica Nacional, que tem alíquota zero, mas não contempla proteínas, indispensáveis em qualquer dieta. Por isso criaram a “cesta básica Plus” que inclui alguns itens mais sofisticados, com alíquota reduzida para 60% da normal, mas que gera o CashBack para os consumidores de renda baixa, assim definidos os que possuem renda média per capita de até meio SM.
A regulamentação do “Cash Back” é muito extensa, o que revela a complexidade do sistema, pois vai do artigo 100 ao 113. Quem tiver tempo, paciência ou obrigação de ler esse texto vai verificar que tudo foi nele previsto, desde o conceito, até os detalhes do envio dos recursos para Brasília, os tramites para distribuir os custos pelos três entes e o impacto sobre a alíquota média.
Falta apenas uma avaliação custo/benefício da sistemática proposta e, também, o seu impacto para as demais faixas de baixa renda e sobre o IPCA. Curioso notar que o Relatório da OCDE, tão detalhista, não citar “Cash Back”, pois os países da OCDE preferiram simplesmente isentar ou reduzir alíquotas dos bens e serviços que quiseram beneficiar o consumidor, ou estimular o consumo.
Como “casuísmo” gera “casuísmo que, por sua vez exige novos casuísmos, todo esse “sistema tributário virtual do consumo” enfrenta um grande problema, a realidade, que é a existência de um sistema tributário real, com impostos de consumo que não podem ser simplesmente eliminados de uma vez. Lembra Gramsci, para quem ”Crise é quando o velho não morreu e o novo não pode nascer”. Essa realidade, obrigou a um novo casuísmo, inédito no mundo. A convivência, por um longo período, dos dois sistemas, o “virtual” e o real, criando uma situação cujos resultados são absolutamente imprevisíveis.
Afora tantas incertezas e casuísmos, foram criados quatro Fundos, cujo montante é incerto, e cujas fontes de recursos não estão definidas. Como a União que deve bancar os Fundos já enfrenta dificuldade para cumprir as metas do “arcabouço fiscal”, certamente terá que aumentar impostos, para cumprir esse compromisso.
Em conclusão; O Brasil vai fazer uma experiência sem qualquer precedente no mundo, que poderá consagrar o país como o IVA mais moderno ou, criar grande complicação que poderá ter consequências muito sérias não apenas para a economia, mas para toda sociedade.
Para encerrar, cito novamente Gramsci para quem “devemos ser pessimistas na análise, e otimista na ação”. Acho que fiz a primeira parte.