A condenação criminal na Itália do ex-jogador de futebol Robson dos Santos, o Robinho, pelo crime de estupro, voltou a ser notícia após o pedido da justiça italiana ao STJ (Superior Tribunal de Justiça) para transferência do cumprimento da sua pena ao Brasil, a chamada extradição executória. De acordo com sentença condenatória, em janeiro de 2013, Robinho, em concurso com outros amigos, no interior de uma boate em Milão, praticou diversos atos libidinosos com uma mulher de origem albanesa, a qual se encontrava sob efeito de álcool, impossibilitada de expressar seu consentimento.
Após o trâmite processual, Robinho foi condenado a nove anos de reclusão, mais multa de 60 mil euros. A sentença foi proferida pela 3ª Seção Penal do Supremo Tribunal de Cassação de Roma, na Itália e, em 19 de janeiro de 2022, a Corte de Cassação, última instância da justiça italiana, confirmou a condenação, a qual transitou em julgado.
Na época da condenação, o atleta estava no Brasil e, por essa razão, não pôde ser preso, já que nossa Constituição não autoriza extradição de brasileiro nato. O pedido de extradição foi denegado com base no artigo 5º, inciso LI, da CF, segundo o qual, “nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes de sua naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei”. Foi então, requerida ao STJ, a homologação da sentença condenatória para execução da pena aqui no Brasil.
Ocorre que, neste caso, não é cabível a pretendida extradição executória porque a Lei 13.445/17 — Lei de Migração, entrou em vigor somente 4 anos após o cometimento da infração penal e não pode retroagir para prejudicar o réu, à luz do que dispõe nossa Constituição [1]. Com efeito, muito embora a nova lei, em seu artigo 100, tenha previsto a hipótese da transferência da execução da pena de prisão ao Brasil [2], à época dos fatos somente se encontrava em vigor o artigo 9º do CP, que autoriza a homologação de sentença estrangeira em duas únicas hipóteses, sem mencionar a pena privativa de liberdade: reparação civil do dano ex delicto e execução de medida de segurança.
Se a extradição executória fosse unicamente um instituto de direito processual, sua incidência seria imediata, nos termos do artigo 2º do CPP [3]. A lei puramente processual incide imediatamente, alcançando todos os atos procedimentais realizados sob sua vigência, pouco importando se a infração penal foi praticada antes de sua vigência, e não importando também se a nova regra é mais gravosa para o acusado (tempus regit actum).
A extradição executória não é um instituto de natureza processual, mas de caráter híbrido, contendo tanto aspectos processuais quanto penais, submetendo-se, portanto, ao princípio da irretroatividade da lei penal mais severa, insculpido no artigo 5º, XL, da nossa CF: “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”.
O fato de a norma que estabeleceu a extradição executória não ter definido crimes, nem cominado penas, não lhe confere, por si só, a condição de norma processual pura. Esse não é o único parâmetro para aferição de seu caráter misto. A extradição executória amplia o espectro do jus puniendi e cria novas hipóteses para sua plena satisfação. Anteriormente à Lei de Migração, a pena privativa de liberdade imposta não podia ser executada no Brasil, inviabilizando a satisfação da pretensão punitiva da justiça alienígena. Norma exclusivamente processual é aquela que se restringe a disciplinar procedimentos, regulamentar o exercício processual das partes e do juiz, além de prever os recursos cabíveis. Norma processual não cria novas formas de punir, nem as amplia, nem alarga o campo de satisfação do Estado, seja na imposição da pena, seja em sua execução.
Deste modo,
“considera-se penal toda e qualquer norma que afete, de alguma maneira, a pretensão punitiva ou executória do Estado, criando-a, extinguindo-a, aumentando-a ou reduzindo-a. Assim, uma norma que incrimina um fato novo tem caráter penal, pois está criando o direito de punir para o Estado, com relação a esse fato. Se a norma cria uma nova causa extintiva da punibilidade, está afetando o direito de punir, permitindo seu perecimento ante uma nova hipótese. Se aumenta o diminui a pena, também repercutirá no jus puniendi estatal. Uma regra que proíbe a concessão de anistia, graça ou indulto está fortalecendo o direito de punir, tornando-o imune à extinção por um desses motivos(…).As normas que tratam do cumprimento da pena, como, por exemplo, as que dificultam o livramento condicional ou o sursis, permitem a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos ou multa, e assim por diante, têm inequivocamente natureza penal, já que afetam a satisfação do direito de punir, tornando-o mais ou menos intenso” (…) processual é a norma que repercute apenas no processo, sem respingar na pretensão punitiva. É o caso das regras que disciplinam a prisão provisória, proibindo a concessão de fiança para determinados crimes, ampliando o prazo de prisão temporária ou obrigando o condenado a recolher-se à prisão para poder apelar da sentença condenatória. Embora haja restrição ao jus libertatis, o encarceramento se impõe por uma necessidade ou conveniência do processo, e não devido a um aumento na satisfação do direito de punir do Estado. Se o sujeito vai responder preso ou solto ao processo, isso não diz respeito à pretensão punitiva, até porque tal tempo será detraído da futura execução (CP, art. 42).
Essa é também a posição do STF, o qual não admite a irretroatividade in pejus da norma processual híbrida, reiterada na questão da aplicação retroativa do artigo 28-A do CPP – Acordo de Não Persecução Penal. Ao julgar o HC 217.275, em 27 de março de 2023, a 2ª Turma, relator ministro Edson Fachin, entendeu que “a expressão ‘lei penal’ contida no art. 5º, XL, da CF, é de ser interpretada como gênero, de maneira a abranger tanto as leis penais em sentido estrito, quanto leis penais processuais que disciplinam o exercício da pretensão punitiva do Estado ou que interferem diretamente no status libertatis do indivíduo” [5]
A extradição executória vai muito além de simplesmente regular um procedimento de execução da pena. Ela amplia o alcance da satisfação do poder punitivo, na medida em que abre para a jurisdição estrangeira a possibilidade de satisfação de seu jus puniendi (direito de condenar e impor a pena). Viabiliza o que antes não era cabível, ou seja, o exercício do jus punitionis (direito de executar a pena imposta e concretizar o pleno exercício da pretensão de punir). Com a nova lei, incrementa-se a força punitiva estrangeira, com a respectiva ampliação do direito de punir.
Tratando-se de norma híbrida e considerando que sua parte penal é prejudicial ao réu, a nova regra da extradição executória submete-se ao princípio da irretroatividade in pejus da lei penal, dogma constitucional erigido à categoria de cláusula pétrea, (CF, artigo 60, § 4º, IV).
Há ainda outro óbice à transferência da execução da pena imposta em solo italiano, agora, de natureza processual. O Tratado de Cooperação Judiciária entre Brasil-Itália, ratificado pelo Congresso por meio do Decreto Legislativo nº 78/1992, de 20 de novembro de 1992, e promulgado pelo Presidente da República mediante o Decreto nº 862/1993, não menciona o cumprimento de pena privativa de liberdade como hipótese de extradição executória.
Com efeito, o artigo 1.3 do Decreto nº 862/1993, que trata do Objeto da Cooperação, não prevê tal possibilidade: “Artigo 1 (…) 3. A cooperação não compreenderá a execução de medidas restritivas da liberdade pessoal nem a execução de condenações”.
Assim, mesmo que se pretendesse conferir à extradição executória um caráter meramente procedimental, contrariando toda a orientação doutrinária e jurisprudencial já edificada e fazendo-a retroagir in pejus, em afronta ao Texto Constitucional, ainda assim, ela não poderia ser implementada, pois a cooperação internacional entre Brasil e Itália não compreende execução da pena privativa de liberdade.
A Lei de Migração, em seu artigo 100, parágrafo único, inciso V, impõe como requisito para a extradição executória, a existência de tratado de reciprocidade. O Decreto Presidencial nº 862/1993, no qual se funda o pedido de homologação ao STJ, em seu artigo 1.3, veda de maneira expressa, a transferência da execução de penas restritivas da liberdade pessoal. Se o próprio tratado firmado entre a República Federativa do Brasil e a Itália manifestou a vontade de ambos os países de não aceitarem transferência de cumprimento de medida restritiva de liberdade, falta o requisito previsto na Lei nº 13.445/2017, que é a existência de um tratado de cooperação prevendo tal possibilidade.
O ex-jogador, no entanto, não ficará impune, devendo ser novamente processado no Brasil, com observância dos princípios constitucionais do contraditório e ampla defesa, levando-se em conta que o prazo prescricional ainda está muito longe de se ultimar. Como o delito foi praticado por brasileiro em solo estrangeiro, incide, a extraterritorialidade da lei penal brasileira, nos termos do artigo 7º, II, “ b”, do CP, o qual prevê o princípio da personalidade ativa
A observância do devido processo legal e o respeito à CF asseguram previsibilidade e segurança jurídica, independentemente da natureza da infração penal, e garantem a higidez de nosso sistema de garantias constitucionais.