Imagina a minha cara quando eu soube, ao voltar a São Paulo depois de um mês na tribo dos Guajajara, no Sul do Maranhão, que o jornal “ex-”, para o qual trabalhava e fui fazer a reportagem, tinha fechado. Horas e horas de gravações, entrevistas memoráveis, canções maravilhosas, histórias fantásticas iriam parar no lixo! Meu grande amigo e um dos sócios do “ex-”, Hamilton Almeida Filho não deixou. Ligou para o seu amigo Mino Carta.
A recepcionista, eu estava vendo direito, era a ex-vedete Marlene Morel, me levou até uma sala, onde, em volta de uma grande mesa escura se acomodavam em confortáveis cadeiras estofadas alguns homens circunspectos, concentrados tamborilando a máquina de escrever à sua frente. Eram todos jornalistas consagrados tocando a “Isto É”, uma nova revista mensal e eu um estranho no ninho.
Não me lembro se Mino leu a minha reportagem naquela mesma hora ou se dias depois, o que eu me lembro é que ele gostou muito, eu tinha escrito imitando o jeito que os guajajaras falavam, e não como um repórter, ele comprou a matéria e ainda por cima me contratou. Assinou a minha primeira carteira de trabalho:
“Empregador: Encontro Editorial Ltda.
Endereço: Av. Paulista 2006 5o. andar
Cargo: Repórter
Remuneração: Dez mil cruzeiros mensais
Data: 1o. de março de 1977”
Tivemos muitas brigas. Certa vez, no meio de um fechamento noturno – a “Isto É” já tinha virado semanal – eu me recusei a escrever a matéria que tinha que escrever. Minha escola era a da imprensa nanica, que não admitia qualquer desvio moral, nem interferência política e muito menos comercial na redação. Eu me recusava a escrever a matéria desconfiado de que havia alguma coisa por trás da entrevista que eu tinha feito com o presidente da Vasp. Para mim, não havia assunto. Só podia ser uma jogada comercial.
O espaço da matéria estava diagramado, o tempo passando e eu sentado, de braços cruzados. Fazendo uma espécie de greve. Mino me chamou às falas e ameaçou: “Se você não escrever, terá que arcar com as consequências!”. “Eu arco com as consequências”, respondi, malcriado.
Chegamos a um acordo, por fim, já de madrugada: eu ditei a matéria para o Armando Salém, que a escreveu. Apesar da minha insolência e irresponsabilidade, não fui demitido.
Outro entrevero deu-se por ocasião da morte de Tancredo Neves. Como de hábito, Mino estava lendo minha matéria, sentado na sua posição favorita, sobre uma das pernas. E um lápis vermelho na mão direita. Parou a leitura numa frase entre aspas. “Você tem certeza que Fernando Henrique disse isso???”
Claro que eu tinha certeza, senão não escreveria e também óbvio que não tinha gravado, a frase brotou numa conversa ao pé do ouvido entre o então senador FHC e o futuro ministro da Justiça, Fernando Lyra, durante o velório, no Palácio da Liberdade, em Belo Horizonte, eu estava escondido atrás de uma coluna.
“Sarney não vai fazer 2% do que Tancredo faria”, disse FHC. E só eu ouvi. E só eu escrevi.
Podia ser o título da matéria, ou até chamada de capa, mas Mino riscou a frase com o lápis vermelho e me acusou:
“Já quer intrigar a Nova República que mal está nascendo!”
E ainda me rotulou com uma de suas expressões mais memoráveis:
“Fanático do apocalipse!”
Muitos anos depois, já na “Carta Capital” ele me disse que se arrependeu daquele corte.
Ele me demitiu duas vezes. O que quer dizer que me contratou duas vezes também. Ele não me demitiu, aliás, mandou demitir. Da primeira vez, o executor da pena foi Silvio Lancellotti; da segunda, José Onofre. Lembro-me bem dessa última. Onofre me chamou para dar uma volta no corredor da redação. “Mino não quer que você continue aqui” disse ele. Eu tinha dado uma enorme barriga. “Salvei Tancredo” me disse o cirurgião Walter Pinotti e eu publiquei. Três dias depois, Tancredo morreu.
Passei situações ridículas ao seu lado. Vergonhosas. A mais vexatória delas foi na churrascaria Rodeio. Seria um almoço com um empresário famoso, o coronel Amaro Rolim, fundador da TAM. Seria – porque eu exagerei na vodka durante os coquetéis de entrada e passei o tempo todo no toilette botando os bofes pra fora enquanto Mino e Rolim almoçavam no salão.
Por esse vexame Mino também me perdoou.
Dizem que, certa vez, num acesso de fúria, espatifou uma máquina de escrever no chão. Não vi, mas não duvido. Ele era um perfeccionista. Não admitia que um Luís saísse com “z” e não com “s”. Ou uma soma errada. Coisas assim o levavam à loucura. Não gostava de seu nome de batismo – Demétrio – que ele mesmo trocou para Mino. Também ficava de mau humor se alguém lembrasse do seu aniversário, cuja data escondia a sete chaves – mas desconfio que seja 15 de setembro.
Entrava na redação como um imperador em seu palácio. Apesar da baixa estatura, reforçada pelo salto carrapeta, olhava tudo de cima, o que podia parecer arrogância, mas era tão somente a certeza de que ele conhecia cada centímetro daquele espaço e podia cumprir todas as tarefas, da mais humilde à mais fundamental, com um pé nas costas. E posso dizer sem medo de errar que ele nunca traiu o jornalismo, jamais compactuou com episódios como aquele em que, erradamente, supus que ele tinha pego em fio desencapado.
“Cubra-se de glória!” dizia Mino ao despachar o repórter para a rua, com uma pitada de ironia e outra de incentivo. Sabia ser mordaz e podia até perder as estribeiras, mas o que o acalmava e fazia sorrir e às vezes gargalhar era o momento em que ele via, em primeira mão, o original do “Bar Brasil”, que eu fazia com Paulo Caruso e ele publicava na última página. E até reconheceu, no prefácio de um de nossos livros, que os leitores, por esse motivo, liam a revista do fim para o começo.
Devo quase tudo a Mino, inclusive o fato de me tornar conhecido mais do que mereço. O expediente das revistas dele vinha por ordem alfabética e não de importância do jornalista. Graças ao alfabeto, meu nome era o primeiro, o que, para muitos leitores, queria dizer que eu era o mais importante.
Também devo a ele a fama que alguns me atribuem, de escrever bem. Ao pentear minhas matérias, Mino tornava-as melhores, mas quem assinava era eu.
Pena esse artigo não ter sido penteado por ele.
Não se fazem mais Mino Carta como antigamente.