ENTENDA AS IMPLICAÇÕES PENAIS
Evidente que não compactuo com nenhuma espécie de ilícito, notadamente penal, seja quem for seu autor.
No entanto, o que pude aprender nesses 35 anos de atuação na área do direito, é que não se deve fazer pré-julgamento.
Toda parte deve ser ouvida e a ela possibilitada a mais ampla defesa, já que nem tudo que reluz é ouro.
Demonstrado que alguém errou, que seja punido na forma da lei, pouco importando de quem se trate. Por outro lado, não havendo indícios suficientes de autoria e prova da existência de um crime (materialidade), sequer pode ser iniciado um processo penal, sob pena de ser caracterizado constrangimento ilegal e eventualmente até mesmo abuso de autoridade.
É impossível dar a opinião sobre caso concreto sem conhecer em sua integralidade as provas produzidas. É até leviano e irresponsável assim proceder.
Porém, hipoteticamente, não vejo problema.
Todo presente de valor elevado que o Presidente da República recebe de um governo estrangeiro ou de particulares no exterior deve ser integrado ao acervo público presidencial, passando a pertencer à União. E o motivo é bem simples: o presente foi recebido pelo fato de o agraciado ser o chefe de governo e, por isso, não pode ele se apropriar desse bem e passar a se comportar como se dono dele fosse.
Somente é possível incorporar ao patrimônio particular bens personalíssimos ou de uso pessoal, como uma caneta, medalha ou abotoaduras com o nome do agraciado, bem como roupas, perfumes, sapatos e outros objetos similares, desde que não sejam de valor elevado.
É certo que essa questão traz divergências de interpretação, uma vez que não há norma específica sobre o tema, mas uma decisão do Tribunal de Contas da União, que interpretou o artigo 3º, parágrafo único, inciso II, do Decreto nº 4344/2002, no sentido de que o dispositivo “apenas admite a conclusão de que não só os documentos bibliográficos e museológicos, recebidos em eventos formalmente denominados de “cerimônias de troca de presentes”, devem ser excluídos do rol de acervos documentais privados dos presidentes da República, mas, também, todos os presentes, da mesma natureza, recebidos nas audiências da referida autoridade com outros chefes de estado ou de governo, independentemente do nome dado ao evento pelos cerimoniais e o local que aconteceram” (Processo: TC 011.591/2016-1, j em 31.08.2016).
Notem que se trata de interpretação bem elástica do dispositivo, mas lógica e sensata, podendo integrar o acervo particular do Presidente da República, de acordo com a decisão do TCU, apenas os itens de natureza personalíssima, como medalhas ou objetos personalizados, ou de consumo direto, tais como bonés, camisetas, gravatas, chinelos, perfumes, dentre outros.
No entanto, faço a ressalva de que não há lei que assim determine, mas apenas decisão do Tribunal de Contas da União, o que certamente levará à discussão jurídica de poder referida decisão, que sequer é judicial, já que os tribunais de contas fazem parte do Poder Legislativo e não do Judiciário, ser empregada na esfera penal para ensejar o crime de peculato.
O funcionário público, seja ele quem for, que se apropria de bem do qual tem a posse em razão do exercício do cargo ou o desvia em benefício próprio ou de terceiro, comete o crime de peculato, definido no artigo 312 do Código Penal: “Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio: Pena. Reclusão, de dois a doze anos, e multa”.
A primeira parte do tipo descreve o peculato-apropriação, enquanto a segunda o peculato-desvio.
Pressuposto deste crime é a posse lícita do objeto material pelo funcionário público em razão do cargo ocupado. A palavra “posse” deve ser entendida em seu sentido mais amplo, abrangendo também a detenção. De tal sorte, aplica-se a norma igualmente à posse indireta (disponibilidade jurídica sem apreensão material).
No peculato-apropriação há inversão do título da posse ou detenção. O agente passa a comportar-se como se fosse o dono da coisa. Essa modalidade de peculato nada mais é do que uma apropriação indébita cometida por funcionário público em razão de seu cargo. O funcionário se apropria de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse ou detenção em razão do cargo.
Diferentemente do que ocorre no peculato-apropriação, no peculato-desvio o funcionário público dá ao bem destino diverso do estabelecido em lei ou em outro ato normativo, seja em seu próprio proveito ou de outrem, mas sem a intenção de se apropriar do bem, que é elemento da primeira figura típica.
Assim, se o funcionário público que detém, no primeiro momento, licitamente um bem em razão de seu cargo, deliberadamente o vende para ficar com o valor para si ou o entregar a terceiro, está dele se apropriando indevidamente, haja vista que o bem pode estar na sua posse ou detenção, mas não é de sua propriedade para dele dispor, o que caracteriza o delito de peculato-apropriação.
Além da infração penal, essa conduta do agente público configura ato de improbidade administrativa previsto no artigo 9º, da Lei nº 8.429/1992, que dispõe: “Constitui ato de improbidade administrativa importando em enriquecimento ilícito auferir, mediante a prática de ato doloso, qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, de mandato, de função, de emprego ou de atividade nas entidades referidas no art. 1º desta Lei, e notadamente: (…)
Improbidade administrativa é infração de natureza civil praticada por agente público em razão de suas funções, que pode lhe ensejar a perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao seu patrimônio, reparação integral do dano, quando houver, a perda da função pública, a suspensão dos direitos políticos, a proibição de contratar com o Poder Público por determinado tempo e o pagamento de multa. Também pode atingir o particular, inclusive empresa, que age dolosamente em concurso com o funcionário público.
Por fim, se o dinheiro oriundo da venda do bem apropriado é ocultado ou dissimulada sua origem ilícita (crime ou contravenção), haverá o delito de lavagem de dinheiro, previsto no artigo 1º, “caput”, da Lei nº 9.613/1998, que dispõe: “Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal. Pena: reclusão, de três a 10 anos, e multa”.
E todas as pessoas que, de qualquer forma, concorrerem para a prática destes delitos, serão coautores ou partícipes, recebendo a mesma pena cominada para o autor, na medida de sua culpabilidade, nos termos do artigo 29 do Código Penal.
Como dito, cuida-se de uma análise muito breve de forma hipotética, sendo temerário qualquer tipo de análise do caso concreto neste momento em que a ideologia fala muito alto e o sentimento de vingança ainda mais.
O que se espera é uma análise isenta dos órgãos da persecução penal, que não podem se deixar levar pela ideologia ou pressões de quem quer que seja, a fim de ser apurada a verdade real dos fatos e, se o caso, após o devido processo legal, ser proferido o acórdão de forma justa e imparcial, doa a quem doer.
Autor: César Dario Mariano da Silva – Procurador de Justiça – MPSP. Mestre em Direito das Relações Sociais – PUC/SP. Especialista em Direito Penal – ESMP/SP. Professor e palestrante. Autor de diversas obras jurídicas, dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal, Manual de Direito Penal, Lei de Drogas Comentada, Estatuto do Desarmamento, Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade, publicadas pela Editora Juruá.