Há quem acorde com a mandíbula cansada, o rosto dolorido e a sensação de ter passado a noite lutando contra algo invisível. Esse “algo” tem nome: bruxismo. Mas sua natureza vai muito além do ato de ranger os dentes. É uma história sobre tensão, sono, autocontrole e sobrecarga do sistema nervoso.
Mais do que um problema odontológico, o bruxismo é hoje visto como um fenômeno neurofisiológico e emocional, e entender suas raízes é essencial para tratá-lo com eficácia, especialmente num mundo que nos faz apertar os dentes, literalmente.
Quando a noite se transforma em campo de batalha
Durante o sono, o corpo deveria relaxar. Mas em alguns de nós, o cérebro mantém os músculos da face em alerta. O resultado é o ranger inconsciente dos dentes; um ato que pode soar inofensivo, mas tem impacto profundo sobre o corpo.
O bruxismo é classificado em duas formas principais:
- Bruxismo do sono: ocorre de forma involuntária, geralmente associada a microdespertares e à ativação do sistema nervoso simpático, o mesmo que dispara a resposta de luta ou fuga.
- Bruxismo em vigília: aquele apertamento constante durante o dia, típico de quem vive sob tensão ou concentração excessiva.
Os estudos mais recentes mostram que esse comportamento não nasce nos dentes, mas no sistema nervoso central. O ato de apertar ou ranger é uma resposta motora inconsciente, um modo de liberar energia reprimida ou de manter a via aérea aberta durante episódios sutis de apneia.
Ou seja: o bruxismo pode ser tanto sintoma de estresse quanto mecanismo de defesa fisiológica.
O que está por trás do bruxismo
Falar sobre bruxismo é falar sobre como o corpo reage ao mundo.
O ranger de dentes pode parecer um simples gesto muscular, mas é o resultado de uma orquestra complexa entre cérebro, emoções, sono e até o que colocamos na xícara antes de dormir.
O estresse costuma ser o maestro dessa orquestra.
Quando estamos tensos, o sistema nervoso simpático, aquele que prepara o corpo para a ação, fica hiperativo.
Os músculos da face, especialmente os masseteres, permanecem em alerta, como se precisassem defender algo. O problema é que essa vigília não se desliga quando o dia termina. Mesmo no travesseiro, o corpo continua pronto para lutar.
A ansiedade é uma aliada fiel do bruxismo. Ela faz o pensamento girar em círculos e impede o relaxamento muscular profundo. Muitos pacientes relatam que percebem o apertamento em momentos de concentração intensa, lendo, dirigindo ou simplesmente tentando resolver algo mentalmente. O cérebro foca, o maxilar responde.
Mas o enredo não para nas emoções. O sono fragmentado tem papel central, principalmente no chamado bruxismo do sono.
Pesquisas recentes mostram que os episódios acontecem durante microdespertares, pequenas ativações cerebrais que quebram o ritmo do descanso. Nessas brechas, o corpo se move, a mandíbula se contrai, e o som do ranger pode ecoar sem que o dorminhoco perceba.
Em alguns casos, há uma explicação curiosa: o movimento de apertar os dentes pode ser uma tentativa inconsciente de abrir as vias aéreas, uma resposta de autoproteção diante de uma respiração obstruída, como apontam estudos sobre apneia e hipóxia leve.
Há ainda a influência da genética. Algumas pessoas nascem com uma reatividade muscular maior, uma sensibilidade que faz o sistema nervoso responder de modo mais intenso a estímulos emocionais ou fisiológicos. É o que explica por que, mesmo em famílias tranquilas, pode haver mais de um “ranger” na casa.
O que bebemos e comemos também entra nessa equação. Cafeína, álcool e nicotina estimulam o sistema nervoso e reduzem a capacidade de relaxar. Um café depois do jantar, um vinho antes de dormir ou o cigarro “para aliviar” a tensão pode, na prática, manter o cérebro em modo alerta durante a noite.
E há, claro, os fatores locais, como o encaixe dos dentes. Durante anos, acreditou-se que o bruxismo era causado por problemas de oclusão, mas hoje sabemos que o papel da mordida é secundário. Ela pode agravar o quadro, principalmente se houver pontos de contato desiguais ou restaurações mal ajustadas, mas raramente é a causa principal.
Por fim, há uma camada menos falada: os medicamentos. Certos antidepressivos, ansiolíticos e estimulantes, especialmente os que alteram a dopamina, podem modificar o controle motor e desencadear episódios de bruxismo, principalmente em pessoas predispostas.
Em resumo, o bruxismo é como um espelho das pressões internas e externas.
É a soma do estresse que não se expressa, do sono que não repara, dos hábitos que excitam e da mente que não desliga.
Por isso, tratá-lo exige mais do que proteger os dentes: exige ensinar o corpo a confiar novamente no descanso.
Diagnóstico e evolução
O diagnóstico é clínico, baseado na anamnese e no exame odontológico: desgaste dentário, dor facial, sons articulares e cansaço mandibular são pistas claras.
Em casos mais complexos, polissonografia ou eletromiografia (EMG) ajudam a identificar a frequência e intensidade das contrações musculares.
O curso clínico é flutuante: melhora em períodos de estabilidade emocional e piora com o estresse. Sem manejo adequado, pode causar:
- Desgaste dentário e fraturas.
- Dor e rigidez nos músculos da face e pescoço.
- Cefaleias tensionais.
- Distúrbios da articulação temporomandibular (ATM).
- Sono fragmentado e fadiga matinal.
O que funciona (e o que não funciona tanto assim)
A ideia de que basta usar uma placa para “curar” o bruxismo é um mito. As placas oclusais são importantes para proteger os dentes e redistribuir forças, mas não tratam a causa. Elas são parte de um protocolo mais amplo, que deve envolver:
- Educação e mudança de hábitos
Aprender a manter os dentes desencostados durante o dia, reduzir cafeína, evitar álcool à noite e cuidar da higiene do sono. - Gerenciamento do estresse
Técnicas de respiração, psicoterapia, mindfulness e biofeedback reduzem a hiperatividade muscular e a ansiedade. - Fisioterapia e terapia manual
Alongamentos, massagens e exercícios miofuncionais ajudam a aliviar a tensão e melhorar a mobilidade da mandíbula. - Toxina botulínica (BoNT-A)
Estudos recentes (AlShaban et al., 2024) mostram eficácia no alívio da dor e na redução da força muscular em casos severos, embora o efeito seja temporário (3 a 6 meses) e requeira avaliação criteriosa. - Tratamento do sono
Quando há suspeita de apneia, tratar o sono melhora significativamente os episódios de bruxismo (Szczesniak et al., 2025).
Em 2024, um ensaio clínico comparativo (Şahin et al., J Oral Facial Pain Headache) analisou quatro modalidades: botox, agulhamento a seco, terapia manual e farmacológica — e concluiu que todas reduzem a dor, mas com variação de tempo e intensidade. O recado dos autores: “individualize o tratamento.”
E a acupuntura? O que a ciência revela
Por muito tempo, a acupuntura foi vista como uma abordagem “alternativa”. Hoje, é coadjuvante validada em diversas áreas da dor orofacial, e as pesquisas recentes sobre bruxismo começam a consolidar essa evidência.
Como ela atua
A acupuntura ativa fibras sensoriais que modulam a liberação de endorfinas, serotonina e dopamina, promovendo analgesia, relaxamento muscular e regulação do sistema nervoso autônomo, todos pontos críticos no bruxismo.
Ela também melhora a qualidade do sono e ajuda a reduzir a ansiedade, dois gatilhos centrais do problema.
O que dizem os estudos
- Abdelaziz et al. (2025, BMC Oral Health) — Em um ensaio clínico com crianças, a laser-acupuntura (sem agulhas) reduziu dor e atividade muscular, com melhora da abertura bucal.
- Zhang et al. (2024, QJM) — Em adultos com disfunção temporomandibular (DTM), a acupuntura real superou o grupo placebo na redução da dor e melhora funcional.
- Kim et al. (2025, Digital Chinese Medicine) — Revisão metodológica que reforça o avanço de estudos controlados em acupuntura, com impacto positivo em condições de dor e estresse.
- Lee et al. (USP, 2020) — Revisão sobre auriculoterapia demonstrou redução significativa de ansiedade e tensão emocional, sugerindo efeito complementar no controle do bruxismo.
Esses dados sustentam o uso da acupuntura como parte de um plano multimodal, principalmente nos pacientes que apresentam:
- Dor facial persistente ou rigidez mandibular.
- Sono fragmentado ou insônia.
- Sintomas de ansiedade, irritabilidade ou fadiga crônica.
- Hipertrofia de masseter visível (“face quadrada” de tensão crônica).
Protocolos usuais
O tratamento costuma envolver de 6 a 8 sessões, uma ou duas vezes por semana, com pontos locais (masseter, temporal, ATM) e sistêmicos (Shenmen, Yin Tang, Taichong, Sanyinjiao).
O efeito é progressivo; a cada sessão, o corpo aprende a desarmar o reflexo de alerta que mantém a mandíbula contraída.
Controle, não milagre
A literatura é unânime em um ponto: o bruxismo não tem “cura definitiva”, mas pode ser controlado com eficácia.
O sucesso vem da integração entre as abordagens: placa, fisioterapia, psicoterapia, manejo do sono e acupuntura.
É a soma que faz a diferença.
Um novo olhar
O bruxismo é, em essência, um sintoma do excesso: de esforço, de ansiedade, de vigilância.
É o corpo dizendo, sem palavras, que há algo em nós que não encontra descanso.
Enquanto tentamos controlar tudo, ele nos lembra que há músculos que só relaxam quando o coração desacelera.
Tratar o bruxismo, portanto, não é apenas proteger o esmalte dos dentes, mas restaurar a harmonia entre o pensar e o sentir.
É cuidar do sistema nervoso como se cuida de uma casa: desligando luzes, abrindo janelas e permitindo que o silêncio volte a entrar.
A acupuntura faz isso com a delicadeza de quem entende o corpo como território de energia e emoção e convida o sistema nervoso a reaprender o caminho do repouso.
Não é milagre. É neurociência aplicada com sabedoria milenar.
Referências
- Soares-Silva L, Amorim CS, Magno MB, et al. Effects of different interventions on bruxism: an overview of systematic reviews. Sleep and Breathing. 2024.
- Szczesniak RD, et al. Sleep Bruxism and Hypobaric Hypoxia Exposure: Exploring the Role of Autonomic Instability and Airway Patency. J Clin Med. 2025;14(20):7176.
- AlShaban R, et al. Efficacy and Safety of Botulinum Toxin in the Management of Sleep Bruxism. Dent J (MDPI). 2024;12(6):156.
- Şahin SS, et al. Comparison of Botulinum Toxin, Dry Needling, Pharmacological Treatment, and Manual Therapy for Bruxism-Induced Myalgia. J Oral Facial Pain Headache. 2024.
- Abdelaziz H, et al. Laser acupuncture versus physical therapy in children with bruxism. BMC Oral Health. 2025.
- Zhang Y, et al. Acupuncture for Temporomandibular Disorders: a randomized, sham-controlled clinical trial. QJM. 2024;117(9):647–655.
- Kim M, et al. Advancements and challenges of acupuncture randomized controlled trials. Digital Chinese Medicine. 2025.
- Lee J, et al. Auriculotherapy for stress, anxiety and depression: a systematic review. Rev Esc Enferm USP. 2020;54:e03655.