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Por que rangemos os dentes e o que a ciência (e a acupuntura) têm a dizer – por Cristiane Sanchez

Há quem acorde com a mandíbula cansada, o rosto dolorido e a sensação de ter passado a noite lutando contra algo invisível. Esse “algo” tem nome: bruxismo. Mas sua natureza vai muito além do ato de ranger os dentes. É uma história sobre tensão, sono, autocontrole e sobrecarga do sistema nervoso.

Mais do que um problema odontológico, o bruxismo é hoje visto como um fenômeno neurofisiológico e emocional, e entender suas raízes é essencial para tratá-lo com eficácia, especialmente num mundo que nos faz apertar os dentes, literalmente.

Quando a noite se transforma em campo de batalha

Durante o sono, o corpo deveria relaxar. Mas em alguns de nós, o cérebro mantém os músculos da face em alerta. O resultado é o ranger inconsciente dos dentes; um ato que pode soar inofensivo, mas tem impacto profundo sobre o corpo.

O bruxismo é classificado em duas formas principais:

  • Bruxismo do sono: ocorre de forma involuntária, geralmente associada a microdespertares e à ativação do sistema nervoso simpático, o mesmo que dispara a resposta de luta ou fuga.
  • Bruxismo em vigília: aquele apertamento constante durante o dia, típico de quem vive sob tensão ou concentração excessiva.

Os estudos mais recentes mostram que esse comportamento não nasce nos dentes, mas no sistema nervoso central. O ato de apertar ou ranger é uma resposta motora inconsciente, um modo de liberar energia reprimida ou de manter a via aérea aberta durante episódios sutis de apneia.

Ou seja: o bruxismo pode ser tanto sintoma de estresse quanto mecanismo de defesa fisiológica.

O que está por trás do bruxismo

Falar sobre bruxismo é falar sobre como o corpo reage ao mundo.

O ranger de dentes pode parecer um simples gesto muscular, mas é o resultado de uma orquestra complexa entre cérebro, emoções, sono e até o que colocamos na xícara antes de dormir.

O estresse costuma ser o maestro dessa orquestra.

Quando estamos tensos, o sistema nervoso simpático, aquele que prepara o corpo para a ação, fica hiperativo.

Os músculos da face, especialmente os masseteres, permanecem em alerta, como se precisassem defender algo. O problema é que essa vigília não se desliga quando o dia termina. Mesmo no travesseiro, o corpo continua pronto para lutar.

A ansiedade é uma aliada fiel do bruxismo. Ela faz o pensamento girar em círculos e impede o relaxamento muscular profundo. Muitos pacientes relatam que percebem o apertamento em momentos de concentração intensa, lendo, dirigindo ou simplesmente tentando resolver algo mentalmente. O cérebro foca, o maxilar responde.

Mas o enredo não para nas emoções. O sono fragmentado tem papel central, principalmente no chamado bruxismo do sono.

Pesquisas recentes mostram que os episódios acontecem durante microdespertares, pequenas ativações cerebrais que quebram o ritmo do descanso. Nessas brechas, o corpo se move, a mandíbula se contrai, e o som do ranger pode ecoar sem que o dorminhoco perceba.

Em alguns casos, há uma explicação curiosa: o movimento de apertar os dentes pode ser uma tentativa inconsciente de abrir as vias aéreas, uma resposta de autoproteção diante de uma respiração obstruída, como apontam estudos sobre apneia e hipóxia leve.

Há ainda a influência da genética. Algumas pessoas nascem com uma reatividade muscular maior, uma sensibilidade que faz o sistema nervoso responder de modo mais intenso a estímulos emocionais ou fisiológicos. É o que explica por que, mesmo em famílias tranquilas, pode haver mais de um “ranger” na casa.

O que bebemos e comemos também entra nessa equação. Cafeína, álcool e nicotina estimulam o sistema nervoso e reduzem a capacidade de relaxar. Um café depois do jantar, um vinho antes de dormir ou o cigarro “para aliviar” a tensão pode, na prática, manter o cérebro em modo alerta durante a noite.

E há, claro, os fatores locais, como o encaixe dos dentes. Durante anos, acreditou-se que o bruxismo era causado por problemas de oclusão, mas hoje sabemos que o papel da mordida é secundário. Ela pode agravar o quadro, principalmente se houver pontos de contato desiguais ou restaurações mal ajustadas, mas raramente é a causa principal.

Por fim, há uma camada menos falada: os medicamentos. Certos antidepressivos, ansiolíticos e estimulantes, especialmente os que alteram a dopamina, podem modificar o controle motor e desencadear episódios de bruxismo, principalmente em pessoas predispostas.

Em resumo, o bruxismo é como um espelho das pressões internas e externas.
É a soma do estresse que não se expressa, do sono que não repara, dos hábitos que excitam e da mente que não desliga.

Por isso, tratá-lo exige mais do que proteger os dentes: exige ensinar o corpo a confiar novamente no descanso.

Diagnóstico e evolução

O diagnóstico é clínico, baseado na anamnese e no exame odontológico: desgaste dentário, dor facial, sons articulares e cansaço mandibular são pistas claras.

Em casos mais complexos, polissonografia ou eletromiografia (EMG) ajudam a identificar a frequência e intensidade das contrações musculares.

O curso clínico é flutuante: melhora em períodos de estabilidade emocional e piora com o estresse. Sem manejo adequado, pode causar:

  • Desgaste dentário e fraturas.
  • Dor e rigidez nos músculos da face e pescoço.
  • Cefaleias tensionais.
  • Distúrbios da articulação temporomandibular (ATM).
  • Sono fragmentado e fadiga matinal.

O que funciona (e o que não funciona tanto assim)

A ideia de que basta usar uma placa para “curar” o bruxismo é um mito. As placas oclusais são importantes para proteger os dentes e redistribuir forças, mas não tratam a causa. Elas são parte de um protocolo mais amplo, que deve envolver:

  1. Educação e mudança de hábitos
    Aprender a manter os dentes desencostados durante o dia, reduzir cafeína, evitar álcool à noite e cuidar da higiene do sono.
  2. Gerenciamento do estresse
    Técnicas de respiração, psicoterapia, mindfulness e biofeedback reduzem a hiperatividade muscular e a ansiedade.
  3. Fisioterapia e terapia manual
    Alongamentos, massagens e exercícios miofuncionais ajudam a aliviar a tensão e melhorar a mobilidade da mandíbula.
  4. Toxina botulínica (BoNT-A)
    Estudos recentes (AlShaban et al., 2024) mostram eficácia no alívio da dor e na redução da força muscular em casos severos, embora o efeito seja temporário (3 a 6 meses) e requeira avaliação criteriosa.
  5. Tratamento do sono
    Quando há suspeita de apneia, tratar o sono melhora significativamente os episódios de bruxismo (Szczesniak et al., 2025).

Em 2024, um ensaio clínico comparativo (Şahin et al., J Oral Facial Pain Headache) analisou quatro modalidades: botox, agulhamento a seco, terapia manual e farmacológica — e concluiu que todas reduzem a dor, mas com variação de tempo e intensidade. O recado dos autores: “individualize o tratamento.”

E a acupuntura? O que a ciência revela

Por muito tempo, a acupuntura foi vista como uma abordagem “alternativa”. Hoje, é coadjuvante validada em diversas áreas da dor orofacial, e as pesquisas recentes sobre bruxismo começam a consolidar essa evidência.

Como ela atua

A acupuntura ativa fibras sensoriais que modulam a liberação de endorfinas, serotonina e dopamina, promovendo analgesia, relaxamento muscular e regulação do sistema nervoso autônomo, todos pontos críticos no bruxismo.

Ela também melhora a qualidade do sono e ajuda a reduzir a ansiedade, dois gatilhos centrais do problema.

O que dizem os estudos

  • Abdelaziz et al. (2025, BMC Oral Health) — Em um ensaio clínico com crianças, a laser-acupuntura (sem agulhas) reduziu dor e atividade muscular, com melhora da abertura bucal.
  • Zhang et al. (2024, QJM) — Em adultos com disfunção temporomandibular (DTM), a acupuntura real superou o grupo placebo na redução da dor e melhora funcional.
  • Kim et al. (2025, Digital Chinese Medicine) — Revisão metodológica que reforça o avanço de estudos controlados em acupuntura, com impacto positivo em condições de dor e estresse.
  • Lee et al. (USP, 2020) — Revisão sobre auriculoterapia demonstrou redução significativa de ansiedade e tensão emocional, sugerindo efeito complementar no controle do bruxismo.

Esses dados sustentam o uso da acupuntura como parte de um plano multimodal, principalmente nos pacientes que apresentam:

  • Dor facial persistente ou rigidez mandibular.
  • Sono fragmentado ou insônia.
  • Sintomas de ansiedade, irritabilidade ou fadiga crônica.
  • Hipertrofia de masseter visível (“face quadrada” de tensão crônica).

Protocolos usuais

O tratamento costuma envolver de 6 a 8 sessões, uma ou duas vezes por semana, com pontos locais (masseter, temporal, ATM) e sistêmicos (Shenmen, Yin Tang, Taichong, Sanyinjiao).

O efeito é progressivo; a cada sessão, o corpo aprende a desarmar o reflexo de alerta que mantém a mandíbula contraída.

Controle, não milagre

A literatura é unânime em um ponto: o bruxismo não tem “cura definitiva”, mas pode ser controlado com eficácia.

O sucesso vem da integração entre as abordagens: placa, fisioterapia, psicoterapia, manejo do sono e acupuntura.

É a soma que faz a diferença.

Um novo olhar

O bruxismo é, em essência, um sintoma do excesso: de esforço, de ansiedade, de vigilância.
É o corpo dizendo, sem palavras, que há algo em nós que não encontra descanso.

Enquanto tentamos controlar tudo, ele nos lembra que há músculos que só relaxam quando o coração desacelera.

Tratar o bruxismo, portanto, não é apenas proteger o esmalte dos dentes, mas restaurar a harmonia entre o pensar e o sentir.

É cuidar do sistema nervoso como se cuida de uma casa: desligando luzes, abrindo janelas e permitindo que o silêncio volte a entrar.

A acupuntura faz isso com a delicadeza de quem entende o corpo como território de energia e emoção e convida o sistema nervoso a reaprender o caminho do repouso.

Não é milagre. É neurociência aplicada com sabedoria milenar.

Referências

  1. Soares-Silva L, Amorim CS, Magno MB, et al. Effects of different interventions on bruxism: an overview of systematic reviews. Sleep and Breathing. 2024.
  2. Szczesniak RD, et al. Sleep Bruxism and Hypobaric Hypoxia Exposure: Exploring the Role of Autonomic Instability and Airway Patency. J Clin Med. 2025;14(20):7176.
  3. AlShaban R, et al. Efficacy and Safety of Botulinum Toxin in the Management of Sleep Bruxism. Dent J (MDPI). 2024;12(6):156.
  4. Şahin SS, et al. Comparison of Botulinum Toxin, Dry Needling, Pharmacological Treatment, and Manual Therapy for Bruxism-Induced Myalgia. J Oral Facial Pain Headache. 2024.
  5. Abdelaziz H, et al. Laser acupuncture versus physical therapy in children with bruxism. BMC Oral Health. 2025.
  6. Zhang Y, et al. Acupuncture for Temporomandibular Disorders: a randomized, sham-controlled clinical trial. QJM. 2024;117(9):647–655.
  7. Kim M, et al. Advancements and challenges of acupuncture randomized controlled trials. Digital Chinese Medicine. 2025.
  8. Lee J, et al. Auriculotherapy for stress, anxiety and depression: a systematic review. Rev Esc Enferm USP. 2020;54:e03655.
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