A crise na segurança pública merece uma análise sob variados aspectos para
que o país possa se organizar e se fortalecer internamente, de modo a propor e
a aplicar soluções à escalada da violência e do crime organizado. A estrutura
pública ao longo dos anos foi desviada dessas funções e, tragicamente, passa
a desempenhar o papel de fomentadora e de protetora do crime organizado,
favorecendo o aliciamento de jovens, promovendo o tráfico de drogas em
crescente escala e tornando a população refém dos criminosos. Ou seja, a atual
segurança pública do Brasil é funcional à expansão e ao aprofundamento da
violência e do crime organizado que a todos nós ameaçam.
O Brasil adota há séculos uma estrutura pública calcada em um governo central,
seja no império, seja na República. Nas sete constituições, desde a do Império até
a de 1988, nenhuma atribui responsabilidades a esse governo central em relação à
segurança pública. Uma questão crucial para a sobrevivência socioeconômica da
população, mas que se encontra praticamente à parte da esfera federal.
Este é o fato primordial para entendermos a crise que vivemos na segurança
pública, em que o crime se nacionaliza e transnacionaliza, mas não há uma
autoridade central com suporte constitucional e legal, e nem recursos materiais
e financeiros, bem como pessoal disponível, para fazer uma coordenação de
combate a esse mal que aflige rigorosamente todos os brasileiros, direta ou
indiretamente.
Consequência desse quadro, é que se pode afirmar que o Brasil não dispõe de um
sistema nacional de segurança pública e nem de uma política setorial destinada a
fortalecer a segurança pública.
Um exemplo permite avaliar com mais facilidade o que busquei expressar até
aqui. Imagine que alguém é roubado. Quem irá cuidar disso? A esfera estadual,
por meio de seus órgãos, como o Ministério Público Estadual, a Polícia Militar Estadual, a Polícia Civil Estadual e a Justiça Estadual. A esfera federal não tem qualquer atribuição ao que diz respeito a esse ou a outros delitos que compõem o universo da segurança pública.
A Constituição de 1988 ofereceu uma oportunidade para que a segurança
pública pudesse ter sido brindada com o merecido status de poder contar com
um ministério exclusivo para a sua gestão. Foi o que aconteceu com toda a área
social, que alcançou o mais alto nível da administração pública federal; assim,
foram contemplados com ministérios os setores de educação, saúde, cultura,
esportes, previdência, turismo, entre outros.
Mas em relação à segurança pública, em mais de 300 anos, considerando o
período republicano, somente tivemos a oportunidade de tê-la abarcada por um
ministério durante dez breves meses, no governo do então presidente Michel
Temer, do qual fui titular. E é com base nesta experiência, bem como à frente
do Ministério da Defesa e como deputado presidente da Comissão de Segurança
Pública e Combate ao Crime Organizado da Câmara dos Deputados, que faço as
observações, análises e proposições aqui contempladas. É uma forma de contribuir
com o necessário debate nacional sobre a questão da segurança pública
■ Ausência de autoridade central com suporte constitucional
Este debate deve sempre levar em conta os dados. A questão da segurança pública
precisa ser avaliada, por exemplo, em relação aos gastos e aos efetivos policiais.
Quando somamos o conjunto de despesas das três esferas administrativas com
segurança pública – municípios, estados e união –, segundo dados compilados
pelo Fórum Nacional de Segurança, em 2022, a partir de relatórios do Tesouro
Nacional, temos o total de R$ 124 bilhões.
Desses três níveis da administração pública, a contribuição do governo federal
é de apenas R$ 23 bilhões. Ou seja, a participação de todo o governo federal é
equiparada ao orçamento de apenas de dois estados, São Paulo e Minas Gerais.
Quando observamos o efetivo policial, o Brasil tem 782 mil policiais distribuídos
entre estaduais, guardas municipais, policiais penais e policiais federais.
Considerando essas polícias, o efetivo federal que se encontra na Polícia Federal é
de 12 mil homens e mulheres; na Polícia Rodoviária Federal outros 12 mil e com
mais o efetivo da Polícia Penal o total gira em torno de 27 mil homens e mulheres.
O efetivo federal não chega sequer a 5% do total das polícias existentes no país.
A pergunta que não quer calar é: será que é possível ao governo federal, apenas
com este efetivo, e sem as responsabilidades constitucionais e o suporte legal para
efetuar o papel de coordenação, sem recursos e pessoal, reunir condições para
coordenar o combate à criminalidade no Brasil? Difícil. Praticamente, impossível.
Lembro, ainda, que a Polícia Federal tem atribuições relacionadas a alguns tipos
penais, como contrabando, drogas, mas assume diversas funções administrativas,
como é a o caso da emissão e controle dos passaportes e da imigração, por exemplo.
Já a Polícia Rodoviária Federal fiscaliza 70 mil km de rodovias federais. Ou seja,
nem PF nem PRF têm atribuições diretas, ou com a amplitude necessária, para
dar conta da segurança pública.
Outro tópico a compor este mosaico da crise da segurança pública é o sistema
prisional brasileiro. Este sistema ostenta a terceira maior população carcerária do
mundo, atrás da China e dos Estados Unidos.
Temos no Brasil aproximadamente 680 mil apenados, o que corresponde a
quase o dobro das celas disponíveis. É um sistema sabidamente saturado. Mas
é bem mais do que isso, apresentando uma situação caótica e crítica. Enquanto
o governo federal dispõe de um número tímido de penitenciárias de segurança
máxima – apenas cinco –, os estados têm 1,4 mil. É o retrato da imensa
assimetria entre governo federal e estados.
■ Prisões alimentam a indústria do crime com dinheiro público
As estruturas prisionais são um problema. Não o maior, mas, sim, o poder
que delas emana. Essas unidades prisionais, em quase sua totalidade, estão
sob controle de aproximadamente 70 facções de base criminal. São facções
criminosas que nasceram, desenvolveram-se e cresceram no sistema prisional, ou
seja, no ventre de um equipamento que é público, sustentado pelos impostos da
população, alvo constante do crime e que só dispõe da frágil estrutura do Estado
para protegê-la. O dia em que o conjunto de cidadãos despertar para o fato de
estar alimentando essa indústria do crime com o dinheiro de seu trabalho, o risco
político e social é expressivo.
Nos presídios, as facções, como PCC, Comando Vermelho, Amigos dos Amigos,
3º Comando da Capital, Família do Norte, Guardiões do Estado etc., são as que,
em última instância, comandam de lá de dentro o que acontece em termos de
violência e de crime organizado aqui fora. São sequestros, tráfico de drogas e de
pessoas, lavagem de dinheiro, contrabando, garimpo ilegal, desmatamento e uma
série de atividades odiosas. Trata-se de uma constatação repetida constantemente
ao longo de muitos anos, mas que, tragicamente, não causa efeitos, reconhecidos
pela sociedade, de que está havendo combate efetivo a essa situação. Este é
um debate interditado desde sempre e, portanto, sem solução. É via o sistema
prisional, verdadeiro “home office” do crime organizado, que o seu exército é
recrutado, treinado e lhe jura obediência.
No sistema prisional brasileiro são as facções criminosas que asseguram a vida
dos apenados que lá se encontram, substituindo o próprio Estado, já que este
seria seu dever e responsabilidade.
Dentro do sistema prisional, 55% dos apenados são jovens negros, de famílias
desestruturadas, com pouca ou nenhuma renda e baixa escolaridade. Este sistema
tem funções básicas, que são privar de liberdade aqueles que cometeram crimes e
recuperá-los para a reinserção em sociedade. No entanto, identifica-se que 95% dos
apenados não têm atividade laboral e 97% não têm atividade educacional, conforme
dados do Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional (Sispen),
de quando era ministro da Segurança Pública – a partir de fevereiro de 2018.
Uma das fontes de alimentação da superlotação carcerária e de irrigação das
contas das quadrilhas do crime organizado é o mundo das drogas. Vivemos o pior
cenário, já que nossa política de combate às drogas pode ser considerada falida,
conforme os dados disponíveis. Eles mostram o crescimento do comércio de
drogas e do número de apenados que se encontram em cadeias e penitenciárias,
resultado de atuarem nessa atividade criminosa, sem que se tenha alternativas
colocadas. Em vez disso, o que estamos a ver no Congresso Nacional é mais uma
decisão regressiva no que diz respeito ao uso e ao porte de drogas, mesmo que
consideradas leves.
Foi iniciada no dia 19 de março, no Senado Federal, a primeira sessão de debates
da proposta de emenda à Constituição para criminalizar a posse e o porte de
entorpecentes e drogas afins, independentemente da quantidade. A PEC 45/2023
tem como primeiro signatário o senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente
do Senado, tendo sido aprovada por ampla maioria na Comissão de Constituição
e Justiça daquela casa de leis. Não obstante o respeito à livre manifestação, o
relator da matéria na CCJ, o senador Efraim Filho (União-PB) considera que deve
ocorrer, para a maioria das pessoas, a criminalização pelo porte dos entorpecentes
ilegais. A tese por ele defendida é que a liberação das drogas provoca o aumento
de consumo. Há controvérsias e esperemos que os senadores encontrem
serenidade e embasamento técnico-científico para tomarem a decisão final.
■ É necessária a criação do Sistema Único de Segurança Pública
Uma leitura superficial de que o sistema prisional segue sendo abastecido
com pessoas apenadas poderia dar a impressão de que o sistema de segurança
pública funciona, afinal retira de circulação parte dos criminosos e os submete
a julgamentos e a penalidades legais. Na verdade, as quadrilhas organizadas
acabam beneficiadas, porque o sistema não cumpre o papel fundamental de
recuperar jovens que ingressam nas penitenciárias. Pelo contrário, os lança
definitivamente na senda do crime organizado porque passam a viver sob
controle das facções criminosas.
E são, geralmente, jovens considerados vulneráveis. Segundo o IBGE, no Brasil,
temos 11 milhões de jovens, de 15 a 24 anos, fora da escola e fora de qualquer
trabalho. Jovens dessa faixa etária matam, morrem e elevam a média nacional
de homicídios; deveriam ser foco de uma ampla política, que identificasse onde
se encontram e que permitisse ofertar a eles saúde, cultura, educação, lazer e
emprego, ou seja, oportunidades para usufruírem a cidadania plena. Não parece
ser um desafio impossível de ser superado, afinal, apenas 2% dos municípios
respondem por 50% dos crimes, que acabam por envolver, sobretudo, a juventude
negra, pobre e de baixa escolaridade das periferias.
Em sequência, mais um aspecto que permite o cenário ideal para a crise de
segurança é a falta de uma profunda e racional reforma relacionada ao aparato
policial. Temos polícias que precisam ser mais bem treinadas, persiste uma
imensa disparidade em relação aos programas de formação conduzidos pelos
estados. Há os que formam policiais em dois ou três meses e outros, como São
Paulo, que levam mais de 12 meses.
Outra medida importante é que as polícias sejam despolitizadas, já que a
atividade política é intensa no meio, haja visto a bancada que as representam
no Congresso Nacional e nas assembleias estaduais. Soma-se a necessidade
imperativa de que implantemos novos modelos de corregedorias que possam
contar com independência, recursos materiais e financeiros, além de pessoal, para
promoverem o disciplinamento e afastar maus policiais que tendem a contaminar
a carreira.
Adicionalmente, seria bem-vinda uma atualização dos regimentos draconianos
que orientam a ação policial, bem como merece haver investimento específico
para promover a autoestima dos policiais, o que é possível com a ampla reforma
das polícias, conforme mencionado.
A classe política, incluindo-se governantes eleitos, parlamentares, oposição e
situação, não deve se furtar a prestar o necessário serviço à nação de guindar o
tema segurança pública à prioridade. Esta é uma questão que restringe o exercício
da cidadania, que prejudica investimentos, inibe a livre circulação das pessoas,
corrói a democracia e desperta na sociedade o sentimento de exercer iniciativas
do ‘olho por olho’ para agir contra os malfeitores e, assim, agiria como se
fornecesse água para mover o moinho de potenciais governos autoritários.
A necessária centralização do combate ao crime na esfera federal, que tanto faz
falta ao Brasil, poderia ser promovida por meio de emenda constitucional. É uma
atitude que requer comprometimento, coragem e determinação das lideranças
políticas, mas que, ao longo dos anos, não tem contado com a adesão dos
governantes e disposição política para assumirem esta responsabilidade.
Uma saída para este dilema nacional seria retomar esforços iniciados no primeiro
governo do atual presidente da República. Refiro-me à proposta de completa
instalação do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), delineado à época
sob coordenação do antropólogo Luiz Eduardo Soares, e que terminou sendo
aprovado no governo de Michel Temer.
Pelas ferramentas que o SUSP dispõe e pelo fato de ser embasado em lei – e não
apenas em planos de caráter temporário –, ele poderia se tornar a ponte para que
tivéssemos uma coordenação nacional efetiva, base para a construção de um
sistema sólido o suficiente para que pudéssemos enfrentar esse imenso desafio,
que é a falta de segurança pública no Brasil. Esta é uma questão que está no cerne
de muitos problemas que afetam a qualidade e as expectativas de vida das pessoas,
o presente e a sustentabilidade que deveria assegurar um futuro promissor ao país
e aos brasileiros, à vida e à democracia, antes que seja tarde.