Venho apontando há tempos com meu dedinho que as selvagerias viraram um novo normal de comportamento, pelo menos aqui na concentrada urbanidade sem humanidade de São Paulo. Aqui. Ali. Às vezes as identifico sem nem precisar sair, apenas olhando pela janela ou mesmo atendendo ao telefone. Toda hora, por exemplo, recebo pedido de resgate de parentes que não tenho, fora as tentativas de golpe às dezenas.
Até já estou escolada, mas agora nem sempre são telefonemas só noturnos ou na madrugada. Chegam de dia e para o celular e telefone fixo que por teimosia ainda insisto em manter. O script, o mesmo: “Mãeeeee! Os caras me pegaram!” … “Paaaai, me salva! Paga o que eles estão pedindo!” e nem se tocam que foi uma mulher que atendeu. O som sempre por detrás são as ameaças e berros que o coitado do “filho” que não tenho (e nem netos, nem sobrinhos) está enfrentando no teatro que encenam de dentro dos presídios. O horror, e imagino a agonia que causa em quem tem mesmo algum parente que possa estar em perigo. Quando estou de bom humor cozinho o galo, levo a conversa mais um pouquinho, até me divirto, antes de aproveitar e ir à forra desanuviando o meu stress e respondendo com tantos, desculpem, tantos e tão fortes palavrões e sugestões de lugares para onde eles devem ir, que nem eles talvez conheçam. Admito: tenho por perto uma baianinha que roda todas as saias quando provocada, e que “desce” em minha defesa. Espero que você nunca a conheça. Até eu mesma demoro a voltar ao normal quando ela se afasta.
Embora, para se defender na selva, às vezes precisamos, admito – desculpem – também sermos selvagens, especialmente como mulheres independentes, ainda pouco aceitas na realidade em que vivo. Bem sei o que já passei. O que já enfrentei.
Essa semana um caso que veio à tona, no entanto, me emocionou. O do motorista de ônibus que percebeu e detonou uma tentativa de estupro – à luz do dia uma mulher sendo coagida por um homem que a levava à força pela rua. Parou o ônibus. E ele e alguns passageiros tiraram a vítima das mãos do algoz que infelizmente até hoje pelo menos a polícia ainda não encontrou. Me chamou a atenção, primeiro, porque não é comum as pessoas se atentarem às dificuldades das outras, prestarem atenção de verdade, olharem para os lados. Segundo, pelo expediente e coragem, também pouco comuns no cosmo onde impera o cada um por si.
Outro dia precisei sair de carro – o que tenho evitado porque São Paulo está mesmo impraticável, e o que piora ainda mais com o calor intenso de concreto e trânsito. Foram quase duas horas para vencer pouco mais do que 10 quilômetros. Era hora do rush para completar, o que significa o radinho cheio da malfadada Hora do Brasil em várias estações – não sei como pode persistir essa praga obrigatória, resquícios, resquícios toscos do século passado. Aí você se distrai e presta atenção ao redor, primeiro para não ser assaltado, estar esperto às aproximações, e se distrair nesse tempo perdido. Vi (e ouvi) de tudo, como gente buzinando – deve ser para desanuviar – como se houvesse como escapar; motoristas propositalmente fechando cruzamentos, discussões entre casais; beijos, também. Mas em geral lembrei da selvageria, talvez por ter avistado também tanta miséria caída nas ruas, humanos tombados e largados como as árvores, acusadas junto aos ventos como criminosas em meio ao apagão de uma semana que ainda persiste em alguns locais dada a incompetência das empresas e agências governamentais.
Aliás, querem selvageria maior dos que as guerras que nos assombram? Das divisões de opiniões e debates que continuam criando só ódio e inimizades? As tentativas vindas de uma desviada Santa Catarina em censurar livros, incluindo clássicos? Com o avanço pavoroso do número de feminicídios? Uma lista enorme.
E a decepção, claro. Imagine o que vêm sentindo diariamente os brasileiros retidos na Faixa de Gaza. Com o vem não vai. Agora pode. Não pode mais, fecharam a porta. Com o fracasso da diplomacia?
Aproveito e peço a gentileza de, se possível, os insetos não aproveitarem esse calor para nos atormentarem também, como sinto que estão se organizando, os pernilongos, cupins, traças e outros seres detestáveis.
Marli Gonçalves é jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto.