Dona Benê
Dona Benê nasceu em Piquete. Menina ainda, resolveu que queria continuar estudando. Sendo de família muito pobre e com a mãe viúva, foi trabalhar e estudar numa obra religiosa, cuidando de crianças órfãs. O tempo passou e ela decidiu que seria freira. Dias antes dos votos permanentes, foi atropelada. Ficou entre a vida e a morte, depois por longo tempo hospitalizada e em tratamento fisioterápico. Achou que nunca mais se recuperaria e desistiu da vida religiosa:
- Para não onerar a Igreja – ela sempre dizia.
Fez o normal, se casou e teve um filho. O casamento não deu certo, eles se separaram e ela educou o menino dentro dos princípios cristãos de solidariedade, compaixão, justiça e amor ao próximo nos quais ela sempre acreditou.
Quando o menino fez treze anos, ele manifestou desejo de ir para o seminário. O diretor não o acolheu, pois disse que sua mãe exercia uma profissão indigna, pois era gerente de um motel.
A mãe, com o menino a tiracolo, pediu audiência ao padre Irineu Danelon, provincial dos salesianos. O padre, futuro bispo diocesano, era um salesiano vocacionado. E dona Benê explicou a ele:
- O trabalho que eu faço é digno, sou sozinha, consegui esse emprego, todo mundo me respeita, tenho carteira assinada e é dele que eu tiro meu ganha-pão.
O padre ouviu pacientemente a mãe, entrevistou o menino e decidiu:
- Nada impede você, meu filho, de seguir adiante com seu desejo, se essa for realmente sua vocação. Você é bem formado, tem valores e, se o tempo mostrar, você será um bom sacerdote. Ou um bom cidadão. E que Deus o ilumine em sua caminhada e em suas escolhas futuras.
Como não podia deixar de ser, o menino foi para um seminário salesiano, pois trabalhar com jovens era sua cara. Animado, músico, cativou a todos por sua inteligência, bondade e seriedade. Ficou quatro anos e decidiu seguir outra carreira, onde hoje brilha.
Dona Benê casou-se novamente, teve outro filho, mas também dessa vez o casamento não deu certo. Ela não se casou mais, dedicando-se apenas aos seus meninos.
Fez faculdade de pedagogia, fez mestrado, era coordenadora na faculdade e diretora de escola pública em uma cidade do litoral paulista. Sua escola era um brinco, alto nível educacional e modelo de disciplina e participação da comunidade. Não havia drogas, violência, bullying, depredação ou pichação. Os pais organizavam atividades aos finais de semana, a escola era uma extensão dos lares do bairro e dona Benê chamava os avós para contar histórias e partilhar experiências com os adolescentes. A cidade inteira disputava uma vaga para inscrever seus filhos, referindo-se à unidade como “a escola da dona Benê”:
- A escola da Dona Benê é a melhor da cidade! Mas entra na fila porque é difícil conseguir vaga! – comentavam as mães, nos grupos em que trocavam informações.
E quando alguém perguntava como Dona Benê conseguia aquilo que parecia um milagre, ela simplesmente respondia sorrindo:
- Gestão, presença, disciplina e amor. Mas, sobretudo, amor.
Um dia ela ficou sabendo que, milhas mar adentro, havia uma comunidade de pescadores tradicionais. As professoras eram jovens e nenhuma delas queria dar aula lá, vivendo isolada da cidade, porque só se retornava ao continente a cada quinze dias. Dona Benê se empolgou:
- Eu vou – ela disse – sou aposentada, não tenho compromissos com marido nem com crianças.
E ela abandonou a faculdade e a direção e foi.
Ficou cinco anos lá.
Sua casa, a única com luz elétrica, transformou-se no seu paraíso. Quando os filhos iam visita-la, achavam o máximo como uma mulher de sessenta anos desembarcava serelepe de uma balsa num píer improvisado, saltando nas pedras lisas em meio à forte arrebentação, pois a ilha não tinha ancoradouro.
Nesses cinco anos, ela criou um sistema de atendimento preventivo de saúde aos ilhéus, levou todo mundo ao dentista e ao oftalmo, fez óculos com apoio do Lions Clube para gente que, da mesma idade que ela, nunca tinha descoberto a alegria de ver o mundo com nitidez, pelo emprego de lentes corretivas. Com apoio do Rotary, da empresa de energia e do governo, levou placas solares e iluminou todos os domicílios da ilha.
Fez banheiros modernos em todos os domicílios e orientou as famílias sobre seus direitos trabalhistas e previdenciários.
Criou com os pescadores uma cooperativa de pesca, aumentando o ganho dos trabalhadores.
No dia em que ela partiu, velhos pescadores, acostumados a enfrentar a fúria do mar e a perder companheiros na áspera labuta, sem nunca expressarem sentimento, choraram, lágrimas escorrendo pela primeira vez na vida pelos vincos de seus rostos crestados de sol.
Dona Benê voltou ao continente. Um infarto fulminante a libertou das agruras do mundo e liberou seu espírito para voar até Deus, Não sem antes passar pela sua amada ilha do Montão de Trigo, num sobrevoo rasante de moleca, que ela sempre preservou.