O compromisso com um mundo corporativo mais justo precisa ser praticado o ano todo
Ainda que as demandas das mulheres por equidade no mundo do trabalho sejam muito antigas, foi no começo da era Trump, com um o contexto social e político em transformação, que as marcas e empresas se viram obrigadas a tomar uma posição sobre o assunto. O momento exigiu que as mulheres passassem a verbalizar com mais ênfase suas necessidades: de igualdade de oportunidades e salários, acesso a cargos de liderança, fim do assédio, participação e protagonismo em trabalhos ligados a ciência e tecnologia, só para citar algumas das demandas.
Com o tempo, o debate ganhou novas escalas, camadas e atores. Vimos o surgimento de comitês de diversidade, vagas afirmativas, campanhas publicitárias e selos garantindo que a empresa A ou B é aliada das mulheres e outros grupos de pessoas. E, assim como há sete anos, ainda é necessário retomar o básico e relembrar que: a desigualdade entre homens e mulheres está longe de ser superada nas empresas. Mais do que isso, falar de equidade de gênero é pedra no sapato para muitas organizações que, ainda hoje, se recusam a entender seu papel na sociedade.
A jornada é longa. O Fórum Econômico Mundial estima mais de 135 anos para que homens e mulheres alcancem o mesmo patamar na economia, na política e na educação. As novas estatísticas do IBGE nos mostram um pouco da realidade atual: os homens brancos que fazem parte do 1% mais rico do país concentram mais renda do que todas as mulheres negras juntas. Só esta última informação deveria ser suficiente para justificar os programas de inclusão e reparação para mulheres, especialmente as mulheres negras. Mas, contrariando o bom senso, o que vemos é um crescente movimento anti-ESG, com malabarismos argumentativos que desviam a missão principal da pauta das mulheres (aqui representada dentro do S de Social) como sendo pouco rentável ou competitiva.
A essa perspectiva, a economista Hélène Périvier, uma das autoras do livro “Economia Feminista” e líder do Observatório Francês das Conjunturas Econômicas (OFCE), é certeira: “Ao recorrer ao argumento do desempenho econômico para defender as políticas de igualdade, nos comprometemos com a promessa de que elas serão fonte de enriquecimento. O problema é duplo: as discriminações nem sempre são ineficazes e, quando são, a concorrência nem sempre pode eliminá-las. A luta contra as discriminações não é, portanto, uma questão relativa de alocação ótima de recursos, mas remete à sua redistribuição justa.”
Nós da Think Eva, colhemos inúmeros aprendizados em quase 10 anos trabalhando em projetos com organizações de diferentes portes e segmentos, conscientizando e instrumentalizando as equipes para a construção de culturas mais inclusivas, plurais e igualitárias. Com esses ambientes tão dinâmicos e diversos Brasil afora, aprendemos que todas as pessoas precisam ser ouvidas e vistas, e que os temas precisam ser discutidos em profundidade, com estratégia, tempo e cuidado. Que, quando não são contemplados os aspectos humanos e a diversidade no ambiente de trabalho, o resultado é o burnout, a insatisfação e o conflito. E nos casos extremos, batalhas judiciais.
Nossa experiência prática e estudos também ensinam que só é possível falar de mercados mais justos se colocarmos a Economia do Cuidado nessa equação. Segundo estudo recente da FGV, o trabalho de cuidado, realizado essencialmente por mulheres, representaria 8,5% do PIB, caso fosse remunerado. Enquanto não dermos visibilidade, valor e remuneração justa às mulheres que realizam tarefas de cuidado (além de pensar caminhos para a redistribuição dessas atividades junto aos homens), não será possível falar de equidade de gênero no mundo do trabalho.
Desafortunadamente, a justiça social é algo que se colhe no longo prazo. E não sem investimentos de tempo, energia e também recursos financeiros. Já caminhamos o suficiente para saber que a ausência dessas políticas de inclusão comprometem a sustentabilidade de um negócio, ainda que a tecnologia tome conta de tudo, mas isso fica para uma próxima coluna. Não cuidar das pessoas que trabalham em uma organização é como cortar o galho de uma árvore estando sentado nele. Quando uma empresa busca a equidade tendo em vista a própria reputação ou a expectativa de lucro, tem poucas chances de alcançar um modelo genuinamente inclusivo e sustentável. No lugar de colher a inovação, a criatividade e a relevância que a diversidade traz, elas colhem o desconforto, a insatisfação e a frustração de quem vê sua existência instrumentalizada de maneira desrespeitosa. Para este problema, o único caminho é reconhecer o valor da pluralidade, tendo um compromisso com os direitos e o bem comum, fomentando a igualdade pela igualdade, atravessando as dificuldades — e às vezes até exageros — que essa jornada apresenta.
Em uma nota mais prática, considerar formas de reter e desenvolver mulheres, promover lideranças femininas com bagagens diversas, desenhar jornadas de trabalho mais flexíveis, ter espaços de escuta e melhoria de processos, implementar ações de saúde mental e estruturar políticas justas de licença parental são alguns caminhos para iniciar o processo de equidade. Aprender que não há uma diretriz única que dá conta de todas as culturas corporativas também é parte do processo.
Acreditamos que o setor privado é um espaço poderoso para a promoção de uma sociedade mais justa. Mais do que isso, é um setor que precisa assumir sua responsabilidade nessa tarefa. Entendemos que cada pauta precisa de espaços de confiança para serem trabalhadas. Que é com conhecimento e diálogo que alcançaremos novas mentalidades e atitudes sobre gênero. Ao criarmos políticas e programas perenes, de fato, faremos a diferença na vida das mulheres. E que, jamais, ninguém será desumanizado no caminho.
A data de 8 de março é só um lembrete da longa trajetória que ainda temos. Da responsabilidade diária em fortalecer as mulheres enquanto indivíduos na cultura, na sociedade e, o mais rápido possível, nas políticas corporativas. Só assim poderemos construir futuros menos preconceituosos e desiguais, movimentando transformações dentro e fora do mundo do trabalho.
*Maíra Liguori é jornalista e publicitária, mãe e diretora na consultoria Think Eva e na ONG Think Olga. Ambas as organizações promovem soluções para as questões de gênero e intersecções tendo como ferramenta a comunicação. Seu trabalho nas organizações Think Olga e na Think Eva foi premiado com Leão de Prata em Cannes (2021), bi-campeã do prêmio WEPs, da ONU Mulheres, e finalista do Prêmio Caboré (2021). Em 2017, foi eleita uma das 100 mulheres mais inovadoras do mundo pela BBC de Londres e neste ano foi escolhida pelo Meio & Mensagem como uma das pessoas que estão mudando o jogo no mercado de comunicação.
*Nana Lima é publicitária, mãe e co-fundadora da Think Eva e da Think Olga. Trabalhou nas áreas de marketing e comunicação de multinacionais para América Latina e obteve um MBA pela ESADE (Barcelona). Adquiriu forte visão sobre negócios, gestão e equidade de gênero, que aplica nos projetos de inclusão e cultura organizacional. Seu trabalho foi premiado com o selo de Direitos Humanos da Prefeitura de São Paulo e é Top Voice pelo LinkedIn Brasil desde 2016.